O SENHOR K. E OS GATOS

O senhor K. não gostava de gatos. Não lhe parecia que fossem amigos do homem, e portanto não era amigo deles. «Se tivéssemos os mesmos interesses», dizia, «a sua atitude hostil ser-me-ia indiferente.» No entanto, o senhor K ficava contrariado se tivesse de fazer os gatos saltarem da sua cadeira. «Deitarmo-nos a descansar é um trabalho», dizia, «e deve por isso ter êxito.» Por outro lado, quando os gatos se punham a miar atrás da porta levantava-se da cama, mesmo que fizesse frio, e deixava-os entrar para o quente. «O cálculo que eles fazem é simples», dizia. «Quando deixamos de ir abrir-lhes a porta, deixam de chamar. Logo, chamar é um progresso.»

Bertolt Brecht, in "Assinar a pele" assírio & alvim, 2001
trad. Luís Bruhein

reedição...


Bruce Chatwin "Utz" quetzal, 2012

Tonino Guerra 1920/2012



AMOU TANTO

Agora era velhinha e não conseguia sentir-se tomada de qualquer sentimento em relação a coisa alguma, mas tinha amado muito.
Esperava ainda encontrar-se com algum ser que se movesse sobre a crosta da terra.
Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos, saía com um guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada.
Depois, chegou a Primavera, e todas as manhãs e todas as tardes, com as mãos, tocava as pedras quentes e enxutas. Foi um amor sereno e sem traições que durou até à sua morte.

Tonino Guerra, in "Histórias para uma noite de calmaria" assírio & alvim, 2002
trad. Mário Rui de Oliveira


CANTO NONO

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raizes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.


Tonino Guerra, in "O Mel" assírio & alvim, 2003
trad. Mário Rui de Oliveira

um país que sonha...


"Um país que sonha, cem anos de poesia colombiana" assírio & alvim, 2012
selecção e prologo de Lauren Mendinueta
trad. Nuno Júdice

DA BOA UTILIZAÇÃO DOS CALMANTES

O médico marcou-me consulta, e eu pensei cá comigo: porreiro, não vou ter de esperar.
Cheguei lá; quinze pessoas. Não fiquei nada contente. Felizmente, tinha lá revistas. Pus-me a olhar para as figuras. Doze pessoas. Fiz as palavras cruzadas. Oito pessoas. Fiz o problema de bridge, mas como não sei jogar, foi bastante difícil.
Por fim, chegou a minha vez.
Entrei. O médico disse-me: dispa as calças.
- Ah, desculpe — disse-lhe. - Vim cá porque me dói a cabeça.
- Ah ah, dor de cabeça — disse-me ele. - Tem ideias fixas?
- Tenho, fixas à cabeça
- Consegue localizar a dor?
Localizar — que é que ele queria com aquele localizar? Mais uma palavra fina para assustar as pessoas.
- Vou examiná-lo — disse-me ele.
- Isso não é coisa difícil — disse-lhe eu e abri a boca e mostrei-lhe o dente do siso, o que está estragado.
Pôs-se a olhar para ele e disse-me:
- Já estou a ver o que é. Precisa de uns calmantes.

Raymond Queneau, in "ficções de humor" tinta permanente, 2003

INTERIOR

As coisas que entram pelo silêncio começam a chegar ao quarto. Sabemo-lo porque deixamos esquecidos lá dentro os nossos olhos. A solidão chega pelos espelhos vazios; a morte desce dos quadros, quebrando suas vitrinas de museu; os recantos abrem-se como romãs para que entre o grilo com seus alfinetes; e, embora nos esqueçamos de apagar a luz, a escuridão dá uma luz negra mais potente, que eclipsa a outra.
Mas não são estas as coisas que entram pelo silêncio, mas outras ainda mais subtis; se não tivéssemos deixado a boca também esquecida, saberíamos dizer seus nomes. Para sugeri-las, os preceptistas aconselham a falar de paralelas, que, sem deixar de o ser, se encontram e se beijam. Mas as crianças que resolvem equações do segundo grau suicidam-se sempre logo que chegam aos oitenta anos; e preferimos por isso olhar sem nomes o que entra pelo silêncio, e deixar que todos continuem a afirmar que dois e dois são quatro.

Gilberto Owen, in "rosa do mundo" assírio & alvim, 2001
trad. José Bento

brevemente...

«Estamos em 1979 e, no Irão, sopram os ventos de mudança. O Xá foi deposto, mas Revolução foi desviada do seu objetivo secular pelo Ayatollah e os seus mercenários fundamentalistas. Marjane Satrapi é uma criança de dez anos irreverente e rebelde, filha de um casal de classe alta e convicções marxistas. Vive em Teerão e, apesar de conhecer bem o materialismo dialético, ter um fetiche por Che Guevara e acreditar que consegue falar diretamente com Deus, é uma criança como qualquer outra, mergulhada em circunstâncias extraordinárias. Nesta autobiografia gráfica, narrada com ilustrações monocromáticas simples mas muito eloquentes, Satrapi conta a história de uma adolescência durante a qual familiares e amigos "desaparecem", mulheres e raparigas são obrigadas a usar véu, os bombardeamentos iraquianos fazem parte do quotidiano e a música rock é ilegal. Contudo, a sua família resiste, tentando viver uma vida com um sentido de normalidade. Um livro inteligente, muito relevante e profundamente humano.» Com esta memória inteligente, divertida e comovente de uma rapariga que cresce no Irão durante a Revolução Islâmica, Marjane Satrapi consegue transmitir uma mensagem universal de liberdade e tolerância.

Marjane Satrapi "Persépolis" contraponto, 2012
trad. Duarte Sousa Tavares

nova edição...


Harper Lee "Mataram a cotovia" relógio d'água, 2012

brevemente, na quetzal...

Durante muitos anos, o grande poeta Von Humboldt Fleisher e Charlie Citrine, uma jovem inflamado pelo amor à literatura, foram os melhores amigos. No momento em que morreu, Humboldt era um falhado, tornara-se pobre e só; e Citrine, por seu turno, também não se encontrava numa fase muito auspiciosa da vida: deixara de progredir na carreira, debatia-se nas malhas de um divórcio litigioso, e vivia uma paixoneta por uma jovem mulher pouco recomendável, envolvida com um mafioso neurótico. De repente, é como se Humboldt agisse a partir do além para deixar Charlie um legado inesperado - legado esse que poderá mudar o rumo da sua vida.

Saul Below "O legado de Humboldt" quetzal, 2012


Aclamado como obra-prima aquando da sua publicação em Itália, "Às Cegas" é um romance de grande originalidade e intensidade poética. A sua forma inovadora - um caudal, uma torrente, um oceano de palavras que fluem livremente - serve na perfeição a narrativa de um louco sobre a sua viagem no tempo e no espaço, e que se polariza nas duas categorias antagónicas dos que fazem a revolução e dos seus perseguidores. Claudio Magris trabalha aqui também motivos recorrentes na sua obra: o das vidas afundadas – que é preciso “resgatar para a literatura”; ou o da figura de proa que, à imagem do Homem, tendo perdido o rumo, continua a desbravar os mares, às cegas, num ato único de esperança.
Uma miríade de lugares, situações, símbolos, coincidências e reflexos, que atravessam continentes e séculos - e um retrato da falência da ideologia e do indivíduo à deriva.

Claudio Magris "Às cegas" quetzal, 2012
trad. Sara Ludovico

novo blogue da assírio & alvim...


http://livrariasassirio.blogspot.pt/

brevemente...

Um prolífico escritor vai a um extravagante congresso, para o qual recebeu convite, com alguma estranheza e uma certa inquietação. No mesmo encontro, participa, em lugar do pai recentemente falecido, Vilnius, um jovem criativo com um certo ar de Dylan, que tem como objectivo último da sua vida alcançar o mais total e absoluto fracasso, tema que preside ao invulgar congresso.
Mas fracassar absolutamente não é nada fácil. Que fazer? Nada? Ou pedir ajuda?
O escritor, por sua vez, deseja pôr um ponto final na sua já vasta obra e atingir o silêncio total e definitivo. Fascinado por Vilnius, segue-lhe o percurso e observa-lhe os estratagemas para chegar ao fracasso. É possível que, com a sua improvável união, rodeados e isolados por uma teia de personagens, consigam ter sucesso na busca do fracasso. Talvez o sucesso não seja o que em geral se pensa. Assim, fracasso e sucesso deixariam de ser antónimos, para se transformarem numa mesma coisa.
Como tão bem escreveu um crítico italiano, Vila-Matas «é um funâmbulo que caminha sobre uma linha que não existe».

Enrique Vila-Matas "Ar de Dylan" teodolito, 2012
trad. Miranda das Neves


De tanto te imaginar, de olhos fechados,
sei lá se te perdi!
E se esta sombra com quem voo nos telhados
és tu em vez de ti.

Só sei que quando vieres, real,
a cheirar a pele e a punhal,
com entranhas e caveira...

...terei de coser a tua sombra à minha,
atar o rio à Nuvem da tardinha,
a labareda ao fumo da fogueira.


José Gomes Ferreira, in "Poesia IV" portugália, 1970

PERGUNTAS DE UM OPERÁRIO LETRADO

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sózinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas


DIFICULDADE DE GOVERNAR

Dificuldade de Governar1.
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2.
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3.
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4.
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?


Bertolt Brecht, in "poemas" presença, 1976
trad. Sylvie Deswarte, Arnaldo Saraiva

AMANHÃ ACONTECEU

Que é notícia?

Um hoje que nunca é hoje,
um amanhã que é já ontem
entre ontens que se perdem
no anteontem dos anos
no tresantontem dos lustros...

Que é notícia?

Amanhã acontecido,
notícia é sempre um depois,
é um a viver vivido...

Que é notícia?

Notícia é devoração!
Aí vai ela pela goela
que há-de engolir tudo e todos!
Aí vai ela, lá foi ela!

Nem trabalho de moela
retém notícia...

Notícia sem coração!

Que é notícia?

Cão perdeu-se! Por que não?
Cão achou-se! Ainda bem!
Ainda melhor, por sinal,
se o cão perdido e o achado
forem um só e o mesmo
«lidos» no mesmo jornal!

Que é notícia?

Damos notícia um ao outro
do nosso interesse comum.
Fui Cavalheiro amanhã.
Ontem Senhora serás.
Como eu não há nenhum!...

Que é notícia?

Quando o primeiro tortulho
se abre no céu (silhueta
que em símbolo se tornará)
onde estou, estouvava eu?
Estava com a tia Henriqueta...

Que é notícia?

Fechada para balanço,
tia Queta dormitava.
Com a folhinha nos joelhos,
do tortulho, que treslera,
já em feto se engelhava...

Que é notícia?

Das convulsões deste mundo
dava meu pai a versão:
- Ailitla por toda a Europa...
O guarda-roupa, meu filho,
varia, a tragédia não...

Que é notícia?

O bom do velhote ia
na terceira dentição...

Que é notícia?

Alcatruz que se abalança
a tornar à sua água?
Já o de Éfeso sabia:
não se molha duas vezes
o lenço na mesma mágoa...

Que é notícia?

Notícia em primeira mão
na minha mão infantil:
o papagaio empinado
no claro céu da manhã,
meu jornal publicado
por cima de tanto afã...

Mas terá sido notícia?

Que é notícia?


Alexandre O'Neill, in "De Ombro na Ombreira" dom quixote, 1969