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Entre as pessoas que exercem profissões humildes, entre o instalador de tochas, o encantador de bócios, o apagador de ruídos, por encanto pessoal e da sua ocupação sobressai o Pastor de Água.
O Pastor de Água assobia a uma fonte, e lá sai ela do leito para ir atrás dele. Vai atrás dele e engrossa com a passagem de outras águas.
Às vezes o pastor prefere manter o riacho tal qual é, de pequenas dimensões, só colectando aqui e além o necessário para não se extinguir, tendo cuidado, sobretudo, quando passa por terrenos arenosos.
Vi um destes pastores — eu não o largava, fascinado — que a si próprio e só com um ribeiro de nada, com um fio de água tão largo como uma meda de palha, deu o prazer de atravessar um grande e taciturno rio. Como as águas se não misturavam, apanhou na outra margem o seu ribeiro intacto.
Proeza que não é para o primeiro ribeirador que apareça. As águas iriam num instante misturar-se e ele teria de procurar noutro lado uma nova fonte.
De qualquer modo, uma corrente de rio necessariamente terá de sumir-se mas sobrará quanto baste para dar banho a um pastor ou encher um fosso vazio.
Mas que ele não demore pois, muito enfraquecida, ela está prestes a morrer. É uma água «passada».


Não é assim tão raro encontrar-se um velho de há seiscentos anos, o que aliás causa uma impressão bastante desfavorável.
Se por má sorte ou maldade lhe dermos um encontrão, é de mais para as suas forças de reacção e cai desfeito em pó, pó fino e de muito leve mau cheiro; só continuava vivo por uma derradeira brasa de vontade. É grande espanto encontra-se alguém acabado de morrer.
Para falar a verdade só vi um, a quem se davam quatrocentos anos bem contados, e apenas lá cheguei duas horas depois do acidente, quando já estava tão confuso e a pouco reduzido o que apanharam dele , que mal chegava para encher um alforge, pondo de parte os ossos do tórax. Só os pulmões e o coração se mantinham moles. Aliás, um supervelho que respirava onde mais ninguém encontraria ar. Mas desde há muito renunciara à digestão, contentando-se com banhos leves exteriores, alimentares.


O Estômago (a provincia-estômago) foi usada contra inimigos chegados do oeste. Mais do que invasores propriamente ditos, parece que eram indígenas das montanhas hoje desaparecidos.
Ao descerem à planície, estes homens das montanhas tiveram que atravessar um ribeiro. Ficaram com os pés digeridos. Mais adiante aguentaram uma chuvada muito forte que logo se atirou a eles e roeu as carnes e roupas.
Toda a região à sua frente se transformou em estômago: é esta a verdade.
O ar húmido devorava-os. A pele ia-se em grandes bocados e a carne, por baixo, depressa desaparecia. Até o pó que levantavam estava contra eles. Misturado com o suor, atacava-os. Comidos, não por uma lepra mas cruéis sucos de Estômago, quase todos pereceram.


Henri Michaux, in "No País da Magia" hiena, 1987
trad. Aníbal Fernandes


A PREGUIÇA


«A alma adora nadar.

Para nadar deitamo-nos de barriga. A alma desencaixa-se, e lá vai. Lá vai a nadar. (Se a sua alma partir quando você estiver de pé, ou sentado, ou de joelhos dobrados, ou de cotovelos dobrados, em cada posição diferente do corpo a alma partirá num andamento e numa forma diferentes; explicarei isso mais tarde.)

Fala-se muita vez em voar. Não é isso. O que é preciso é nadar. E a alma nada como as serpentes e as enguias, nunca de outra forma.

Uma data de pessoas têm, assim, uma alma que adora nadar. Chamam-lhes vulgarmente preguiçosas. Quando a alma sai do corpo pela barriga, para nadar, opera-se uma tal libertação de não sei quê, um abandono, um prazer, uma descontracção tão íntima.

A alma vai nadar para o vão da escada, ou para a rua consoante a timidez ou a audácia do homem, pois mantém sempre um fio entre ele e ela, e se esse fio se rompesse (às vezes é muito frágil, mas seria precisa uma força terrível para romper o fio), seria um desastre para ambos (para ela e para ele).

Quando, portanto, se encontra ocupada a nadar ao longe, por esse simples fio que liga o homem à alma escoam-se volumes e volumes duma espécie de matéria espiritual, uma espécie de lama, assim como o mercúrio, ou como um gás — prazer sem fim.

É por isso que o preguiçoso é incorrigível. Nunca mudará. É por isso também que a preguiça é a mãe de todos os vícios. Pois, quem há mais egoísta do que a preguiça?

Ela tem bases que o orgulho não tem.

Mas as pessoas encarniçam-se contra os preguiçosos.

Quando estão deitados, batem-lhes, despejam-lhes água fria na cabeça, e eles devem puxar rapidamente pela alma. Olham-nos então com aquele olhar de ódio, que bem conhecemos, e se observa sobretudos nas crianças.»


Henri Michaux,in "As Minhas Propriedades" fenda, 1998

trad. José Carlos González


FELICIDADE

Às vezes, num repente, sem causa visível, percorre-me um grande arrepio de felicidade.
Vindo dum centro de mim, tão interior que eu o ignorava, ele leva, embora rodando a extrema velocidade, um tempo considerável a alcançar as minhas extremidades.
Esse arrepio é perfeitamente puro. Por mais extensamente que circule dentro de mim, nunca encontra nenhum órgão inferior, nem qualquer outro, de resto, nem encontra ideias, nem sensações, de tal modo é absoluta a sua intimidade.
E tanto Ele como eu estamos perfeitamente sós.
Talvez que , percorrendo todas as partes de mim, ele me pergunte à passagem: «Então, como vai isso? Posso fazer qualquer alguma coisa por si, neste sitio?» É possível. E que à sua maneira me console as entranhas. Mas eu não sou posto ao corrente.
Eu gostaria de proclamar a minha felicidade, mas que dizer? É uma coisa tão estritamente pessoal.
Dentro em pouco, o prazer é demasiado intenso. Sem eu dar por isso, no espaço de segundos, torna-se um sofrimento atroz, um assassinato.
A paralisia! digo cá para mim.


CÓLERA

Comigo, a cólera não surge de repente. Por rápido que seja o seu nascimento, ela é precedida por uma grande felicidade, sempre, que se manifesta fremente.
É soprada de repente, e a cólera começa a ruminar.
Tudo em mim assume o seu posto de combate, e os meus músculos, que querem intervir, até doem.
Mas não há qualquer inimigo. Se houvesse, ficaria aliviado. Mas os inimigos que tenho não são corpos em quem bater, pois o corpo falta-lhes totalmente.
Todavia, passado certo tempo, a minha cólera cede... por cansaço talvez, pois a cólera é um equilíbrio muito difícil de manter... Há também a inegável satisfação de ter trabalhado, e ainda a ilusão de que os inimigos fugiram, renunciando ao combate.


Henri Michaux, in "As minhas propriedades" fenda, 1998


A Simplicidade

O que sobretudo tem faltado à minha vida até agora é a simplicidade. Começo a mudar a pouco e a pouco.
Por exemplo, actualmente saio sempre de casa a minha cama e, quando uma mulher me apetece, agarro nela e deito-me com ela imediatamente.
Se tem as orelhas ou o nariz grande e feios, tiro-lhes juntamente com as roupas e meto-os debaixo da cama, para ela os poder recuperar à saída; só conservo o que me apetece.
Se a roupa interior está a precisar de ser mudada, mudo-a imediatamente. Será a minha prenda. No entanto, se vejo uma outra mulher mais apetecível a passar, peço desculpas à primeira e suprimo-a imediatamente.
As pessoas que me conhecem garantem que eu não sou capaz de fazer o que estou a dizer, que não tenho temperamento para isso. Eu também achava que não, mas isso era porque eu não fazia tudo como me apetecia.
Agora, tenho sempre belas tardes. ( De manhã trabalho. )


Henri Michaux in. "antologia" relógio d'água

imagem de Henri MIchaux