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Contaram-me que as letras descansam de lado, nas páginas macias dos livros antigos. Outros, afirmam que os textos mudam ao sabor das edições; nenhuma se compara à leitura inicial.
Há ainda quem me confidencie que recebe os livros de braços abertos, às vezes até com as pernas, e dou por mim a olhar para as lombadas que me rodeiam; a senti-las latejar como um animal magnifico, alheio a interpretações domesticas.
Se estender a mão, sei que o irei acordar; prefiro entreter-me a escrever este texto, onde as letras ainda são verticais e se estampam no papel, como uma mancha de tinta, uma ave suicida, um eco sem som.


Jorge Fallorca, in "O livro do fim" 2012, edição do autor

CAFÉ

Era um espaço construído de olhares e de ruídos.
Antigo.
Delimitado pelo casulo da menina da tabacaria, com postigo para a rua, e o guarda-vento que lhe defendia a privacidade de gueto masculino.
As mesas dispunha-se ao longo das paredes.
Sublinhadas por fotografias desactualizadas, em conflito com a modernidade dos autocolantes.
Mesas privadas, e de vítima.
Infinitamente repetidas nos espelhos, que as devolviam aos interessados.
Tinha residentes:
o cauteleiro, que apregoava a felicidade avulsa, e um engraxador, de fato-macaco e sapatos cansados de mostrarem o brilho disponível dos seus gestos.
Sempre que podia, fazia-se ouvir com uma tira de pano de bilhar.
Afirmava-se, interrompendo as conversas dos senhores:
o médico, o advogado, o gerente do banco, o rico e o informador.
Também havia um artista.
Cafés sombrios e delatores, da Beira.
Ou catedrais de lavradores, como os de Évora, em dia de são porco.
Cresci neles, com uma onça de tabaco e um caderno, autorizado por um café de saco.
Nem todos foram pervertidos em bancos, ou travestidos em lugares de culto.
Mas entre as saudades do cheiro e do espaço, pondero a maldade e a arrogância da frequência.

Jorge Fallorca, in "Longe do Mundo" frenesi, 2004
ilust. João Rodrigues

MEDO

Durante anos, acreditei que o sono mata.
E como o sono me estimulasse a vontade de morrer, raras foram as noites em que não estreei uma morte nova.
Com a prática, aprendi a prolongar a morte, adiando a agonia do despertar.
Para minha surpresa, ou decepção, a manhã confrontava-me com a extensão da empresa.
Vítima e espectador da minha vítima, acabei por vulgarizar a morte, com prejuízo do repouso que o sono me exigia.
Hoje durmo com uma facilidade espantosa e, raramente, me lembro de adormecer.
Ou sonhar.
Sem que eu ou a morte tenhamos assinado qualquer espécie de tréguas.


Jorge Fallorca, in "longe do mundo" frenesi (2004)

fotografia de Simon Larbalestier