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SEM TÍTULO E BASTANTE BREVE

Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto
poderia Ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lamina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão


Al Berto, in "Degredo no Sul" assírio & alvim, 2007
foto. via assírio & alvim


quando, daqui a umas horas a manhã vier, branca e fina, saberei eu andar?
conseguirei eu, lembrar-me, de como se põe um pé à frente do outro? sem cair…


Al Berto, in "À procura do vento num jardim d'agosto" ed. autor, 1977

ACORDAR TARDE

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia



Al Berto, in "Horto de Incêndio" assírio & alvim, 1997



FALSO RETRATO DE ANDY WARHOL

não penso
transcrevo conversas telefónicas ou falo
com a noite de new york
ou não falo e gravo a voz dos outros filmo
obsessivamente a morte
ou não filmo e multiplico cadeiras eléctricas
excito-me
sou o centro do mundo dos outros e
não existo
ou é a vida que me atravessa o sexo
e finjo a morte ou cintilo
como o diamante

Al Berto, in "O Medo" assírio & alvim, 2000
imag. Andy Warhol, 1981

Coimbra, 11 de Janeiro de 1948


DIZEM QUE A PAIXÃO O CONHECEU

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite
enumera o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


Al Berto

«Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Afasta o espirito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida — entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a lama — estagna o pensamento.
Por tudo isso, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta — sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.»

Al Berto, in "O anjo mudo" assírio & alvim, 2001

Para alguns talvez faça pouco sentido constituir uma colecção da «poesia alentejana» de Al Berto. Trata-se, na aparência, de uma tarefa redundante e desnecessária, uma vez que a quase totalidade dos textos literários do autor de "O Medo" se situam no Alentejo — Sines, Vila Nova de Milfontes, São Torpes. Para outros talvez faça ainda menos sentido regionalizar a obra do «aprendiz de viajante», retalhando, pelo despotismo da geografia, um corpo poético eminentemente universal. Talvez. Ou talvez não. A Associação dos Municípios do Baixo Alentejo e do Alentejo Litoral, através do jornal Diário do Alentejo, a Assírio & Alvim, a Longitude Zero Associação e o Centro Cultural Emmerico Nunes sentiram necessidade de homenagear Al Berto, por ocasião dos dez anos da sua morte. Sentiram urgência em celebrar o poeta refixando as suas próprias palavras. Sentiram, afinal, precisão de regressar. De regressar ao mar, tornando ao sudoeste, ao mar de leva, seguindo os desertos e as cidades e anotando no jornal desta breve viagem algumas geografias assumidas por Al Berto. Ao Sul. No Alentejo.

in "degredo no sul" assírio & alvim, 2007

NO SILÊNCIO DOS JARDINS

Se um dia regressares, a terra estremecerá na memória de tua ausência. E a água formará um vasto oceano no outro lado do teu olhar.
Regressarás, talvez, quando o ar se tornar rubro em redor do meu sono — e o lume das horas, a pouco e pouco, saciar a boca que clama pelo teu nome.
Encontrar-nos-emos nas imagens deste jardim de afectos e ódios. Porque os jardins são labirínticas arquitecturas mentais, onde podemos resguardar os corpos de qualquer voragem do tempo.
Por isso, enquanto não regressas, construo jardins de areia e cinza, jardins de água e fogo, jardins de minerais e de cassiopeias — mas todos abandono à invasão do tempo e da melancolia.
Mas se um dia regressares, passeia-te por dentro do meu corpo. Descobrirás o segredo deste jardim interior — cuja obscuridade e penumbras guardaram intacto o nocturno coração.


Al Berto, in "dispersos" assírio & alvim, 2007

fotografia de Nuno Cera

A TERRA MOSTROU-TE um coração traçado a giz
mais antigo que estes passos num charco de sombra
onde lentamente se agita um corpo definham
as coisas há muito por ti nomeadas

no ébrio rosto da noite perdeste o rosto
num sobressalto de sede ergueu-se a presença
misteriosa de nomes cintilantes sobre o peito

mas não te restou nenhuma aflição nenhuma angústia
da cega e amarga travessia da infância
porque no ermo esquecido dos dias vive ainda
a louca criança de éter incendiado


Al Berto, in "vigílias" assírio & alvim, 2004


Reúnem-se neste volume textos dispersos publicados por Al Berto, sem que tivesse sido nossa intenção proceder a uma recolha exaustiva. Preferimos, na medida do possível, tentar que a selecção de textos obedecesse a um grau de exigência semelhante àquele que o Autor sempre demonstrou nos seus livros, e de que é exemplo o critério por ele adoptado em O Anjo Mudo.

Luís Manuel Gaspar
Manuel de Freitas

in, "dispersos" assírio & alvim, 2007

INCÊNDIO

se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair um chuva brilhante
continua e miudinha — não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo — diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas — com eles no chão


Al Berto, in "vigílias" assírio & alvim, 2004

NOTAS PARA O DIÁRIO

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário — o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida — e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.


Al Berto, in "horto de incêndio" assírio & alvim, 2000
foto. Luísa Ferreira

...acordo para a trémula água das palavras
canto outro corpo...
serei aquilo que for possível ser na solidão da casa
onde as aranhas interromperam o trabalho das teias
e nunca mais voltaram...

...cada gesto agora petrificado
frente ao espelho descubro que sou o único a saber
quem és... lume e pó de cidade
tatuados no reflexo aquático do luminoso corpo...

...a sombra transparente dum veleiro fende a memória
tateio-me para corrigir a realidade... entro no espelho
líquido a líquido procuro as mãos e o nome
sabendo como é sempre extreminadora a madrugada...

...sou um feixe de poeira... perdi a consistência
reclino o corpo de tinta inacessível à dor
sorrio enfim ao desejo de querer morrer...


Al Berto, in "correspondência literária" contexto editora (1984)

imagem de Gèrard Dubois


ENCOMENDA POSTAL

Destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás
a revelação desta arte
onde a vida cinzelou precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta.

Al Berto, in "Vigílias" assírio & alvim


A INVISIBILIDADE DE DEUS

dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão da sua bondosa mão

o certo
é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge estéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo
e sorri
dizendo que nos amou alguma vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser meu.


Al Berto, in "o medo"

imagem de Greg Spalenka


se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar morro de aflição.


"Acreditava que a sua obra se podia reduzir a um único texto. Aquele."

in "Eis-me acordado muito tempo depois de mim, uma biografia de Al Berto" edições quasi

Fotografia de Paulo Nozolino: Lisboa, Escadinhas do Duque, 1984 (colecção da Frenesi)

Francis Bacon [ sand dune ] 1983


"onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a vida, sem mais nada - estará aqui ?
fora das muralhas da cidade ?
no interior do meu corpo ?
ou muito longe de mim - onde não possuo outra razão...
e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente."

Al berto



"em sua boca dardeja um narciso de cuspo
não encontrará na fala sossego algum
depois do susto das palavras murmuradas
o corpo incha e poro a poro uma abelha
refulge sobre a máscara de mel

poderíamos falar dele noite adiante
mas não
o começo da escrita seria a sua voz quebrada
no silêncio obssessivo das horas
mas não
porque são horas de profundo e anónimo
não o lembraremos mais

por trás da máscara recolhe-se por fim o olhar
uma vertigem o seu verdadeiro rosto
este coração em forma de quilha singrando o mar
de resto
já não há sinais visíveis da sua passagem
excepto a impressão digital esquecida
nos labirínticos arquivos de identificação

(...)"

Al Berto - A Noite



SE TE NOMEASSE CINTILARIAS

se te nomeasse cintilarias
no beco de uma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e
nenhuma porta se abriria sob teus passos

onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda

mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?


Al Berto in. "Transumâncias"

imagem de Colette Calascione