«Aqui estou no meu quarto habitual, onde me parece ter estado sempre. Como tantas outras manhãs da minha vida, encontro-me em casa a escrever. Ressoa, vibrante, a música de Be My Baby, cantada por The Ronettes. Quando tinha dezassete anos era a minha canção favorita. De repente, ouço perfeitamente que alguém acaba de chegar ao patamar no elevador. Mas é estranho. Quem chegou não toca a nenhuma das quatro portas, nem se decide a abrir nenhuma delas. É como se tivesse ficado indeciso, aturdido ou simplesmente imóvel, ali. Vivo há tantos anos nesta casa que conrolo muito bem os sons que se possam ouvir perto da minha porta. Passam quase dois minutos até que, exactamente quando a canção termina, tocam à minha campainha. Abro. Vejo um homem mais ao menos da minha idade. É o estafeta de uma editora e veio para me entregar um livro. Dá-mo e assino um papel. “As Ronettes…”, sussurra o homem melancólico. “Põe-me bem disposto”, comento-lhe sem me mostrar surpreendido – embora o esteja – por ele conhecer The Ronettes. Sorrio, despeço-me, fecho a porta devagar, com a amabilidade do costume. Fico à escuta atrás da porta e noto que o homem não entra no elevador. É possível que tenha voltado a ficar imóvel no patamar. Seguramente deixou-se ficar encostado a uma parede, quebrado, desfeito de nostalgia e até a chorar, à espera que volte a pôr-lhe Be My Baby.
Quando via Marcel Duchamp a jogar xadrez no Café Melitón de Cadaqués, não sabia que aquele homem tinha largado a pintura e tinha convertido a sua vida numa obra de arte. Nessa altura eu tinha dezassete anos e só via um francês que jogava xadrez todos os dias. Foi uns anos mais tarde que vim a saber que tinha estado a ver um homem sabiamente libertado de todas as estúpidas amarras da arte. Não nego que há algum tempo que me tenta a ideia de me situar na estela duchampiana, mas creio que, para dar esse passo, precisaria de um escritor que fosse testemunha de tudo, que me seguisse e o narrasse, quer dizer, teria de contratar um escritor que contasse como abandonei a escrita, como me dediquei a converter a minha vida numa obra de arte, como deixei de escrever e não me senti nada mal. Duas possibilidades, perante isto: 1) ponho um anúncio e procuro um escritor que esteja disposto a contar o que fiz depois de ter abandonado a escrita; 2) escrevo-o eu mesmo: invento-me como um escritor contratado que segue os meus passos depois do abandono e escreve por mim um diário, onde piedosamente simula que não deixei a escrita.»

Enrique Vila-Matas, in "Diário Volúvel”
Jorge Fallorca em tradução para a Teorema
Via frenesi

4 comentários:

Um depois de Edgar disse...

eu amo mesmo este teu espaço pah!

continua!!!

Anónimo disse...

http://ajourneyroundmyskull.blogspot.com/

Um blog sobre livros muito bom.

Anónimo disse...

Miguel,

gostei também deste seu blog. Vou voltar para conhece-lo melhor!
Obrigado pelo link!

Anónimo disse...

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é lindíssima a imagem de um homem que larga a pintura e converte a sua vida numa obra de arte.
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enquanto joga xadrez.
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