ANEXO. COMO ME TORNEI ENCANTADOR SIMPÁTICO E DELICIOSO

Durmo muito tarde. Suicido-me a 65%. A vida fica-me muito barata, para mim não é mais que uns 30% da vida. A minha vida tem 30% da vida. Faltam-me os braços, umas guitas e alguns botões. 5% são consagrados a um estado de estupor semi-lúcido acompanhado por crepitações anémicas. Estes 5% chamam-se DADA. portanto a vida é barata. A morte é um bocadinho mais cara. Mas a vida é encantadora e a morte também é encantadora.
Aqui há dias, estava numa reunião de imbecis. Havia muita gente. Toda a gente era encantadora. Tristan Tzara, um personagem pequeno, idiota e insignificante, dava uma conferência sobre a arte duma pessoa se tornar encantadora. Era, aliás, encantador. Toda a gente é encantadora. E espiritual. É delicioso, não é? Aliás, toda a gente é deliciosa, 9 graus abaixo de zero. É encantador, não é? Não, não é encantador. Deus não está à altura. Nem sequer vem na lista. Mas mesmo assim é encantador.
Os embaixadores, os poetas, os condes, os príncipes, os músicos, os jornalistas, os escritores. os diplomatas, os directores, os costureiros, os socialistas, as princesas e as baronesas, é tudo encantador.
Vocês, todos vocês, são encantadores, muito finos, espirituais e deliciosos.
É Tristan Tzara quem vos diz: gostava bastante de fazer outra coisa, mas prefere continuar a ser idiota, um farsante e um aldrabão.
Sejam sinceros, por um instante: o que acabo de vos dizer, é encantador ou idiota?
Há pessoas (jornalistas, advogados, amadores, filósofos) que julgam que mesmo os negócios, os casamentos, as visitas, as guerras, os diversos congressos, as sociedades anónimas, a política, os acidentes, os dancings, as crises económicas, as crises de nervos, são variações de DADA. Como não sou imperialista, não partilho dessa opinião; prefiro acreditar que DADA é apenas uma divindade de segunda ordem, que deve ser simplesmente colocada ao lado das outras formas do novo mecanismo das religiões de interregno.
A simplicidade, é simples ou é DADA?
Acho-me bastante simpático.

Tristan Tzara, in "sete manifestos dada" hiena, 1987
trad. de José Miranda Justo

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