Le bassin de John Wayne



CENA 22


JORNALISTA — E porquê o Pólo Norte?

ARIANE — Era um velho sonho do João: encontrar uma alma gémea com a qual pudesse mexer maravilhosamente a caia no Pólo Norte. Não foi Deus... foi a caia de John Wayne que o inspirou durante uma vida inteira.

JORNALISTA — A bacia de John Wayne? Não estou a ver...

ARIANE — No sonho do meu marido, John Wayne mexia maravilhosamente a bacia no Pólo Norte.

JORNALISTA — Há sem dúvida sonhos muito extravagantes. E, se me é permitido, podemos saber que estranho mistério envolve a bacia de John Wayne?

ARIANE — Não há mistério nenhum. É muito simples: o John Wayne arrasta ligeiramente a perna esquerda, porque é mais pesada do que a da direita. Os velhos alfaiates sabiam-no e, por isso, provavam as calças sempre à medida. Na perna esquerda, junto aos órgãos genitais, desenhavam a giz uma bolsinha e perguntavam escrupulosamente aos clientes: "Está bem assim, ou quer um nadinha mais folgada?". Ora aí tem!

JOÃO DE DEUS, off — Não havia que enganar. Estavam sempre no sítio e à mão de semear.

JORNALISTA — E, tendo chegado a essa conclusão, decidiram casar-se...

ARIANE — Casámos porque estávamos famintos. Famintos de amor, se quiser, que o amor é filho da fome. Já para os gregos, Eros era filho de Pénia, da Pobreza.
O amor é fome de outra vida, desejo de transmitir. Quando dois amantes se abraçam e beijam, entredevoram-se, morrem um no outro, de algum modo, e transitam para um novo ser. A vida não pode ficar, em nós, a repetir-se, que repetir é estar parado, é ocupar o mesmo lugar.
O amor compensa a morte, dá o que ela tira. O homem perpetua-se, amando e alimentando-se: Comei! Este é o meu corpo! O corpo é fruto assimilado; e o fruto é húmus, água e sol. e o fruto assimilado se transformará em espírito, alcançando assim a Divindade.

JOÃO DE DEUS, off — E dizia-se ainda mais. Dizia-se, por exemplo: O que é que o cu tem a ver com as calças? A minha mulher é que sabe tudo mas, para dizer a verdade, não há grande coisa para saber. A primeira vez que vi Ariane, olhei-a nos olhos, de alto a baixo, ai minha rica bacia, calei-me muito bem caladinho, e disse para mim: É esta!
Um homem, se for homem, aguenta a penada: Tem-te, não caias, Joãozinho!
Não sou homem de muitas falas. Na primeira aberta, só lhe disse o que o Professor Salazar terá dito à governanta: "Mariazinha, não estamos aqui para nos divertirmos".

JORNALISTA — E podemos saber o que, à semelhança de tantos dos nossos compatriotas espalhados pelos quatro cantos do mundo, vos leva a emigrar?

JOÃO DE DEUS — Pode. Estamos fartos desta caca.

JORNALISTA — Mas não têm condições de trabalho no nosso país?

JOÃO DE DEUS — Nem de trabalho, nem de coisíssima nenhuma, embora não me desagrade ver trabalhar.

JORNALISTA — Mas nunca exerceu nenhuma actividade profissional?

JOÃO DE DEUS — Ponha artista saltimbanco ou não ponha nada. É-me igual, ma quando era miúdo, passou-me pela cabeça ser marinheiro. Queria andar no mar alto, com um papagaio empoleirado no ombro. Ver outras terras, outras gentes.

ARIANE — Não sejas modesto, meu amor. Agora anda com a mania que foi marinheiro de água-doce.

JOÃO DE DEUS — Je te salue, vieil Océan! Il était un petit navire, qui n'avait jamais navigué...

JORNALISTA — E como pensam sobreviver no Pólo Norte? A comer carne de burro?

JOÃO DE DEUS — A fazer buraquinhos no gelo com a nossa varinha mágica. A minha mulher e eu não gostamos de carne de burro. Temos umas boquinhas muito esquisitas e não somos democratas.

JORNALISTA — e como pensam resistir à inclemência das neves eternas?

JOÃO DE DEUS — Estás a ouvir, Ariane? O gajo diz que a gente não vai resistir.

ARIANE — Deixa-o falar. Parece que não conheces a corja da têvê.

JOÃO DE DEUS — Quem conseguiu sobreviver nesta piolheira, também consegue sobreviver no Pólo Norte. Não se preocupe connosco. Se nos chatearmos, partimos para a lua...

JORNALISTA — Podemos, então, concluir que é o mesmo desejo de aventura que levou os portugueses de antanho à maravilhosa descoberta de novos mundos, que vos motiva ainda hoje?

JOÃO DE DEUS — Oiça, meu simpático senhor: digamos que é o mal-estar do mundo contemporâneo. Sou apenas um pobre emigrante polar. Polar Árctico. Sou velho como o cagar e chamo-me João de Deus.
T'es en train de me regarder, Jean? Excuse-moi le sale coup, mais chat échaudé craint l'eau froide. Ariane va tricoter une pair de chaussettes en laine et moi je t'everrai un petit cachalot, pour tes descentes dans le fleuve. Tiens bon, mon vieux français... Encore un effort... Je ne sius pas merdiatique du tout, n'est-ce pas?

JORNALISTA — Mas...

JOÃO DE DEUS — Anda, Luciano, que já enganámos mais um!


João César Monteiro, in "Le bassin de John Wayne seguido de as bodas de Deus" & etc, 1997

2 comentários:

mar disse...

este café...

olha
bom demais
assim muuuuito
e muito
Bom!

com mil raios Caro Miguel a noite já estava assim pró míope

mas com tanto café e duma vez vai ficar branca
e eu
destraida a pensar que ainda estavas de férias

:)

sorrisos para aí

eyeshut disse...

que maravilha....!