FELICIDADE

Às vezes, num repente, sem causa visível, percorre-me um grande arrepio de felicidade.
Vindo dum centro de mim, tão interior que eu o ignorava, ele leva, embora rodando a extrema velocidade, um tempo considerável a alcançar as minhas extremidades.
Esse arrepio é perfeitamente puro. Por mais extensamente que circule dentro de mim, nunca encontra nenhum órgão inferior, nem qualquer outro, de resto, nem encontra ideias, nem sensações, de tal modo é absoluta a sua intimidade.
E tanto Ele como eu estamos perfeitamente sós.
Talvez que , percorrendo todas as partes de mim, ele me pergunte à passagem: «Então, como vai isso? Posso fazer qualquer alguma coisa por si, neste sitio?» É possível. E que à sua maneira me console as entranhas. Mas eu não sou posto ao corrente.
Eu gostaria de proclamar a minha felicidade, mas que dizer? É uma coisa tão estritamente pessoal.
Dentro em pouco, o prazer é demasiado intenso. Sem eu dar por isso, no espaço de segundos, torna-se um sofrimento atroz, um assassinato.
A paralisia! digo cá para mim.


CÓLERA

Comigo, a cólera não surge de repente. Por rápido que seja o seu nascimento, ela é precedida por uma grande felicidade, sempre, que se manifesta fremente.
É soprada de repente, e a cólera começa a ruminar.
Tudo em mim assume o seu posto de combate, e os meus músculos, que querem intervir, até doem.
Mas não há qualquer inimigo. Se houvesse, ficaria aliviado. Mas os inimigos que tenho não são corpos em quem bater, pois o corpo falta-lhes totalmente.
Todavia, passado certo tempo, a minha cólera cede... por cansaço talvez, pois a cólera é um equilíbrio muito difícil de manter... Há também a inegável satisfação de ter trabalhado, e ainda a ilusão de que os inimigos fugiram, renunciando ao combate.


Henri Michaux, in "As minhas propriedades" fenda, 1998

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