O MONÓLOGO DO PASTOR
Lavis, Lavis, Lavis sonoro, o ponto é querer-se, acordar antes, menos que à hora, acordar com o som de ao longe elas terem já acordado, como as oiço agitadas no terreno, vão bulir com as outras, vão andar soltas, fugir de mim, partir pernas, cair em baixo, oiço os guizos, refrão pesado, a cabeça pesa-me no estômago vazio, tudo vazio, a casa fria, a luz pouca, outro dia sem sol, mundo mundo solidão vazia, tudo vazio, o ar frio, a luz vazia ou a janela sem trapo, o meu sono estragado, acabou-se antes, que força no mijo, que vontade, que luz fraca, afinal, que consolo, ah, aí andam elas, que consolo, ah, que bom quando se tem vontade, aí estão elas, anda para lá, rebolona, restolhona, fora daqui, ah sim está melhor, o leite da cabra, ah uma copada, ali a jeito, um copanzil, ah assim está melhor, um bocado de pão, ah, assim está melhor, e que dia frio, outra vez frio, e o Araújo ainda está a dormir, e que dia frio e fode de manhã se calhar fode de manhã, à noite é os copos, de noite aquece, e de manhã dá-lhe o jeito, boa vida a delas, se calhar não é, mas murcho ando eu, com o cuidado, e as voltas, e esta vida à bruta, sem cómodo nem mulher nem carne nem peixe nem nada só bichos e mata, só mata, e cabeços, e mais cabeços, e se calhar sou de pau, sou algum bicho se calhar, chega para lá, puta da bicha, oh para lá, oh para lá, toca a mexer-me, estão todas vivas, deu-lhes o azougue, toca a andar, estramada da vida, oh toca a andar para a vida, puta de vida, oh toca a ir.
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Este monólogo de um pastor, de ovelhas por exemplo, reproduz, tácito, uma comum sensação de acordar. Acordar sem nada além do hábito, despertar «por fora», por assim dizer, e não vislumbrar mais que a imediata recolha das motivações consabidas, o dever, a comida, o ente hostil, distante e alheio, o real em fuga histérica, e no interior a mancha ensombrecida da entidade miseranda, o homem-sem-saliva.
Álvaro Lapa, in "raso como o chão" estampa, 1977
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