fotograma de Don Quijote de Orson Welles, 1992


OS SEIS MINUTOS MAIS BELOS DA HISTÓRIA DO CINEMA

Sancho Pança entra num cinema de uma cidade de província. Está à procura de D. Quixote e encontra-o sentado a um canto, de olhos postos no écran. A sala está quase cheia, a galeria — que é uma espécie de varanda — está inteiramente ocupada por crianças barulhentas. Depois de algumas tentativas inúteis de ir ter com D. Quixote, Sancho senta-se contrariado na plateia, junto de uma menina (Dulcineia?) que lhe oferece um chupa-chupa. A projecção começou, é um filme de época, no ecrã correm cavaleiros armados, a certa altura aparece uma dama em perigo. De repente, D. Quixote levanta-se, desembainha a espada, precipita-se contra o ecrã e os seus golpes começam a rasgar a tela. No ecrã ainda se vêem os cavaleiros e a dama, mas o rasgão negro, aberto pela espada de D. Quixote, vai-se alargando cada vez mais, devora implacavelmente as imagens. No fim, do ecrã já quase nada resta, vê-se apenas a estrutura de madeira que o sutentava. O público, indignado, abandona a sala mas, na galeria, as crianças não param de encorajar fanaticamente D. Quixote. Só a menina da plateia contempla com ar de censura.
Que devemos fazer com as nossas imaginações? Amá-las, acreditar nelas, a tal ponto que temos de as destruir, falsificar (talvez seja este o sentido do cinema de Orson Welles). Mas quando no fim, elas se revelam ocas, inatingíveis, quando mostram o nada de que são feitas, só então podemos descontar o preço da sua verdade, compreender que Dulcineia — que salvámos — não pode amar-nos.

Giorgio Agamben, in "profanações" cotovia (2006)

10 comentários:

AB disse...

hmmm... sempre me pareceu q o d. quixote procurava uma musa perfeita e não uma humana de carne e osso.... será q isso é amor?

ANÓNIMO disse...

É.

miguel. disse...

:)

AB disse...

então expliquem-me... :P :)

Menina Limão disse...

lindo lindo lindo este post.

L. Soveral Botelho disse...

D. Quixote foi escrito, realizado (e interpretado) por Welles em 1969, o filme é que apenas foi divulgado em 92. Tenho essa cena na retina e concedo que poderá ser considerada bonita.

No entanto, e permito-me discordar, a cena mais bonita do cinema, sendo também de Welles, é a do início do Citizen Kane, quando a câmara começa a subir o gradeamento, culminando na palavra "Rosebud" que Kane deixa soltar (e que é a sua derradeira), imediatamente antes de soltar (repare-se na perfeição da sequência lógica, palavra-gesto) a bola que tem na mão.
Bola que faz a ligação à neve da sua infância.

Isso sim, é beleza.
Penso eu de que...

Ou serei um formalista?

miguel. disse...

caro luís botelho, concordo com o que diz em relação à cena mais bonita do cinema, só não posso concordar quando diz que o filme foi realizado por Orson Welles em 1969 e apenas divulgado em 1992...
como poderá verificar Orson Welles deu inicio às filmagens deste seu projecto em 1957 e nunca foi concluído, como muitos outros que nunca chegou a concluir. Jesús Franco pegou no que estava feito e concluiu este projecto em 1992, tendo então ficado com o titulo de Don Quijote de Orson Welles...

L. Soveral Botelho disse...

Caro Miguel,

Vi o filme no TAGV (Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra) e fiquei com a sensação de que Jess Franco apenas tinha assegurado a montagem final (ou pós-produção), sendo o filme atribuído ao próprio Orson Welles.
No entanto (e quem sou eu...), qual a mão que quer?
Se me fosse permitida a escolha eu oferecia a esquerda à palmatória (sou dextro...)
Já agora, os meus parabéns pelos seus cimbalinos.
Nisso sou Voltaireano: quantos mais, melhor.

miguel. disse...

no fundo pouco importa de quem é ou quem terminou, na realidade ele não aparece na filmografia de Orson Welles, mas tem lá a sua marca... a meu ver até é um filme se assim se pode chamar que eu até nem gosto muito, para ser sincero, tem pormenores interessantes como este que aqui é mencionado e pouco mais que isso... a história do cinema está cheia de equívocos como este, darei também a minha mão.
obrigado pelo elogio aos "nossos" cimbalinos...
TAGV... interessante, é um local agradável... muitas das passagens sublinhadas e aqui mencionadas foram lidas a ver chover na companhia de um fino nesse mesmo espaço, onde espero voltar mais vezes...

abraço

L. Soveral Botelho disse...

Caro Miguel,
A sua passagem pelo TAGV deve ter sido nos intervalos de uma qualquer licenciatura em Relações Internacionais/ Diplomacia...
Eu (que confesso andava ou uns metros mais abaixo na Padre António Vieira, ou uns metro mais acima no Clube de Rugby, a enfiar umas canecas) passei lá nos intervalos da minha licenciatura em Direito.
Antes das obras recordo-me de ver um ciclo especial sobre o "Buster" Keaton, onde estavamos... sei lá, sete espectadores.
Passada a 4ª hora (pelo que recordo durou umas 5 ou 6 horas) já só havia seis espectadores acorados.
A que adormeceu é hoje a minha mulher... e já lá vão 18 anos...

Cumprimentos,