O silêncio só aos surdos não inquieta.
Tenho nas mãos marcas de silêncios antigos.
Olho para o chão, e os meus pés, sobre o silêncio,
resvalam para os passos das crianças : as crianças,
quando preenchem o silêncio, conseguem matá-lo.
(...)

Manuel Cintra "não sei nunca por onde" edições quasi


N

O amputado penetra a noite seguido pelo cão. O ar que se respira é húmido . A humidade entra-lhes directa nos pulmões. A lua projecta do alto das sombras. As sombras crescem. Eles não caminham sozinhos.
De cabelo cortado à escovinha, o amputado avança firme. É um homem robusto e atlético. Leva um embrulho preso entre a força do antebraço e o amparo das costelas. O cão é magro, escanzelado. Um rafeiro de pêlo curto, muito brilhante, mas, como teima permanentemente em mostrar os dentes num jeito do focinho, parece sorrir.
O homem caminha obstinado. Enverga, para além de qualquer intuito ainda desconhecido, um esgar macilento de dor. Enquanto o cão acompanha-o como cão, respirando arquejante, de língua estendida, deixando atrás de si, pelos ladrilhos, paralelepípedos e alcatrão, um lastro translúcido de baba que a lua e as estrelas testemunham.
Seguem em silêncio pela avenida principal, contornando primeiro o jardim da praça, os edifícios velhos da baixa, ladeando o campo das macieiras, seguindo depois em frente, passando pelo caminho-de-ferro, a estação e só depois alcançando o cemitério.

A noite é baça.
As ruas vazias.

Chegados lá, o homem e o cão encontram o portão fechado, dado o adiantado da hora. Ou saltam o muro, ou então esperam pela manhã. O amputado não pensou. pegou no embrulho com a mão inocente e atirou-o. Do outro lado do muro ouviu-se o som mole de algo morto que cai. De seguida, com o auxilio do coto, pegou ao colo o cão leve e balançou-o o suficiente para o lançar desgovernado para dentro do vazio. Depois deste silêncio, o som foi mais adulto, equilibrado, não se fazendo ouvir qualquer latido pesaroso. Ou o cão era mudo ou tinha aterrado sólido sobre as patas, e sobrevivido.
O amputado olhou o céu. contou um conjunto de estrelas, sobre o cimo do muro caiado e repetiu para si os seus nomes: Rubídia, Pálida, Mimosa, Intrometida e Acrux...
Deu quatro passos atrás, medindo a distância. respirou fundo e arrancou em direcção ao obstáculo com a máxima velocidade que as suas pernas detinham. Os seus pés, impulsionados pela força dos músculos, levantaram-no do chão. E por momentos suspenso no ar invisível, sentiu que voava. Depois do impacto, agarrou-se ofegante ao cimo do muro e, quando a gravidade começava a fazer peso, com a ajuda de todo o corpo impulsionado, acabou por sentar-se.
Doa alto do muro a vista era ambivalente: de um lado, esperava-o um campo aceso de lajes - Aqui jaz. Ali jaz. - Um campo de ossos, fotografias e epitáfios semeados por mensagens de despedida ou saudade e ardentes chamas trémulas. Enquanto do outro se apresentava a cidade: fantasmagoricamente iluminada pelas luzes indecisas dos candeeiros; guardada pelos cães vadios e as gruas de aço. Onde, dentro das casas e edifícios, supostamente deitados sobre colchões e lençóis pestilentos, os peitos dos homens e das mulheres horizontais, cravados de ódios e maledicências, levantavam-se e baixavam-se ao ritmo de inspirações e expirações mais ou menos inconscientes.

Eles respiram, pensou o amputado.
-É isto afinal o mundo - acabou por murmurar.

Num salto, os seus pés encontraram a terra amolecida, enterrando-se. O cão e o embrulho esperavam-no subservientes lá em baixo. O cão sorriu ao vê-lo. O amputado retribui-o. Vivo. no meio de tanto cadáver, é quase nada - disse-lhe , enquanto sacudia a terra das calças. Apanhou o embrulho e avançou. Por diante havia uma casa. O cão segui-o por entre os jazigos e as chams das velas que, trémulas, o intrigavam.

Sandro William Junqueira in. " Não há limões "

escutar...


four tet [ Dj-kicks ] k7 2006
fotograma de "as asas do desejo" Wim Wenders


A primeira elegia

Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias
dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua 
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o anjo é terrível.
por isso me contenho e engulo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e os argutos animais sabem já
que nós no mundo interpretado não estamos
confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta que possamos rever
diariamente; resta-nos a rua de ontem
e a fidelidade continuada de um hábito,
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
(...)

Rainer Maria Rilke in. " As elegias de duíno" assírio & alvim

trabalho infantil


fotografia de G. M. B. Akash - Bangladesh
imagem de The stuntKid


Não encontro o AMOR nos corpos que suportam a IMOBILIDADE
O movimento é possivél, o amor é a conclusão.
Dançar para chegar à Conclusão.
Há movimentos melhores que outros. O amor é uma esfera geométrica,
o lado melhor é o lado pior,
o lado mais baixo é o lado mais alto.
Há movimentos melhores que outros.
Há perguntas melhores que outras.

Gonçalo M. Tavares in. "Livro da Dança" assírio & alvim
imagem de Lorenzo Mattotti


Como quem escreve com sentimentos

Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo

Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência

A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada


Ruy Belo in. "Todos os Poemas" assírio & alvim

O

No ventre de Las Vegas, num pântano de crime e sexo, a jovem Jenna Massoli é transformada na bomba Jenna Jamesson. Hoje, Jenna Jamesson é a maior estrela na história do cinema porno, permanentemente classificada como uma das mais belas mulheres vivas. Mas, por detrás do glamour e da ascensão meteórica, esteve um caminho feito de tragédias e desgostos. Adolescente lançada num universo caótico, governado pela violação, abuso e assassínio, Jenna mergulhou numa espiral de vício, mesmo quando se transformou numa das mulheres mais fotografadas em revistas para adultos.
Segundo a Rolling Stone, Jenna Jamesson é a actriz que "acrescentou a estrela à estrela do porno", e uma revista de Nova Iorque chamou-a um "ícone cultural". Reconhecida pela Adult Video News como a mais importante estrela do cinema para adultos, ganhou praticamente todos os prémios concedidos pela indústria de conteúdos para adultos.
Como fazer amor como uma estrela porno, é uma autobiografia com um conteúdo polémico, revelador dos bastidores da industria do sexo, mas também com uma importante dimensão humana. O livro é um objecto apetecível, dotado de uma grafismo atractivo, profusamente ilustrado com fotografias a preto e branco e a cores.

P.S - versão não censurada

Jenna Jameson
"Como fazer amor como uma estrela porno" Dom Quixote
imagem de Tara McPherson


Os Animais Carnívoros

Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso
chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos,
e apareciadepois todo nu escutando-se a si mesmo,
e fazia de estátua durante umparque inteiro,
de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada,
descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão,
a boca estavaimpressa na doçura intransponível da pêra,
e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito,
daquela espécie de beleza repentina eurgente,
inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às
nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso,
e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava
uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio
o que existia agora era uma plantação de espelhos,
o Amor aparecia e desaparecia em todos eles,
e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era
uma criança assassina e andava pela terra com as suas
camisas brancasabertas,
as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Herberto Helder in. "Poesia Toda" assírio & alvim

Agnès Varda [ Sofia Loren em Portugal ]1953
imagem de Alex Gozblau


SE TE NOMEASSE CINTILARIAS

se te nomeasse cintilarias
no beco de uma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e
nenhuma porta se abriria sob teus passos

onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda

mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?

Al Berto in. "Transumâncias"

Edward D. Wood Jr. [Plan 9 from Outer Space] 1959
imagem de Zwir Bogdan



a árvore abriu-te os braços e eu despi-te
o verde como se eu fosse a mão do outono
e dei-te o suco branco da inquietude
e o amor como palavra fome

deixa que o verbo rebente
como tu dentro do eu
língua de terra gramática de onda
nascemos da espuma de uma frase

Pedro Sena-Lino in. " biofagia " edições quasi

Robert Mapplethorpe [William Burroughs] 1979
Peter Hamlin [ privacy pod ]

A minha encarnação actual degrada-se; não creio que possa prolongar-se por muito tempo. Sei que na minha próxima encarnação voltarei a encontrar o meu companheiro, o cachorro Fox.
A vantagem da companhia de um cão deve-se à possibilidade de o tornar feliz; exige coisas tão simples, o seu ego é tão limitado. É possível que em tempos idos a mulher se tenha encontrado numa situação comparável - próxima da do animal doméstico. Havia sem dúvida uma forma de felicidade domótica relacionada com o funcionamento colectivo, que já não somos capazes de poder compreender; existia sem dúvida o prazer de constituir um organismo funcional, adequado, criado para realizar uma sucessão discreta de tarefas - e estas tarefas, repetindo-se, constituíam a sucessão discreta dos dias. Tudo isso desapareceu, e a sucessão de tarefas também; já não temos verdadeiramente um objectivo determinado; as alegrias do ser humano permanecem-nos desconhecidas,as desventuras, por outro lado, não nos abandonam. As nossas noites já não vibram de terror nem de êxtase; mas vamos vivendo, atravessamos a vida, sem alegrias nem mistérios, o tempo parece-nos breve.

Michel Houellebecq in. " A possibilidade de uma ilha "

nighthawks

edward hopper

banksy
Marlene Dumas [ passion ]



poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Mário Cesariny
Vanessa Beecroft
Balthus [alice no espelho] 1933
Feminina

Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas «banquettes» dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro-
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer «potins»-muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar-
Eu queria ser mulher para que me me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto-
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...


Mário de Sá-Carneiro

19 janeiro 1923 / 13 junho 2005


Urgentemente

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Eugénio de Andrade
imagem de Greg Spalenka


Subiu até que, fora de si mesmo,
e com a inteligência a analisar abstracta,
recolhia a censura do silêncio
e, depois disso, a estrídula algazarra.
Seu rodopio de atordoamento
foi-se frustrando. Deu alta
para nenhuma condição de tempo
ir alterar a natureza drástica
da inteligência. De ficarmos vendo
como o estrondo sucumbe ao dar entrada
na análise do fora de si mesmo
e no silêncio da censura em alta.

Fernando Echevarría in. " epifanias " afrontamento
Henry Fuseli [ nightmare ] 1790
imagem de Jay Ferranti


A poesia é uma força destruidora

Eis o que é a desgraça
Nada ter no coração.
Há que isso ter ou nada.

Há que ter essa coisa,
um leão, um toiro no peito,
senti-lo a respirar.

Corazon, cão encorpado,
jovem touro, urso de pata arqueada,
sente o próprio sangue, não o cuspo.

Ele é como um homem
no corpo de um animal violento.
Os seus musculos são seus...

O leão dorme ao sol.
Com o nariz entre as patas.
Pode matar um homem.

Wallace Stevens in. "Antologia" relógio d'água
Elia Kazan - 1951

A versão do realizador traz-nos finalmente, pela primeira vez, a versão integral da provocadora obra de Elia Kazan e Tennessee Williams, tal como teria sido exibida se não tivesse sido censurada nos EUA. O filme conta com mais três minutos de película inédita, na qual fica bem clara a química sexual entre Blanche Dubois (Vivien Leigh) e Stanley Kowalski (Marlon Brando), e a profunda paixão de Stella Kowalski (Kim Hunter) pelo marido Stanley. A edição é composta por dois discos onde se podem ver alguns documentários, imagens retiradas do filme, o comentário audio de alguns historiadores de cinema e um teste de filmagem com Marlon Brando entre outras coisas.
imagem de Lorenzo Mattotti


Nostalgia

Na caixa da ferramenta do poeta
a nostalgia é o instrumento
duma lassidão crepuscular
assassina do dia.

A memória
é um conservatório de combates
mais ou menos arrumados
mais ou menos diferidos
para a caixa dos conceitos.

Obscuro simulacro do real
sombra desmaiada
emergindo cada vez mais lenta
a nostalgia é o adeus da paixão.

Ana Hatherly in. "O pavão negro" assírio & alvim
August Sander [young girl in a circus caravan] 1929

Será possível traduzir por palavras
a música que imaginamos interiormente?
Eu gosto de pensar que talvez seja
a vontade de olhar para dentro e,
do silêncio interior,
dar sequência a algumas (possíveis) imagens
da nossa memória e, ao mesmo tempo,
do preciso momento em que o som
e a ideia são lançados;
mas o maior desafio de todos é, para mim
a procura de outros lugares - indefinidos
e muito longe daquele onde vivemos.
Talvez seja o reflexo da nossa vida;
talvez seja a realidade juntamente
com o reflexo dos sentidos.
Porém, mais do que a própria realidade,
é o espelho das coisas que dela imaginámos.
Do silêncio e de regresso a ele,
essas imagens em forma de música
terão sempre um carácter abstracto,
suspenso, inacabado...

Bernardo Sassetti, 2005
imagem de Randal Gordy Lee


o medo

Ando à volta de tudo isto e,
como quem se despede para sempre,
de costas para o vento e para o amor,
desço em direcção a um cais onde são
inúteis as palavras.
Bebo, fumo, sonho, e conheço bem essa dor
que vem do fundo,
dos vales assombrados onde a armagura
prepara as suas armas.

Não há estrelas, astros, castiçais, nada a
não ser o medo,
nestes climas da alma.

José Agostinho Baptista in. "Quatro Luas" assírio & alvim

A possibilidade de uma ilha


MICHEL HOUELLEBECQ é o enfant terrible da literatura francesa actual. Odiado por uns e amado por outros, os seus livros abordam sempre temas na "moda" e são altamente polémicos, porque ele tem sempre um ponto de vista iconoclasta sobre os problemas. Tem outros livros traduzidos em Portugal, ("As particulas elementares" Temas e Debates, "Plataforma" Bertrand), e é um dos romancistas franceses contemporâneos mais traduzidos no mundo.
A possibilidade de uma ilha é a história de Daniel, um cómico famoso, conhecido pelos seus monólogos cáusticos em que a provocação se mistura com uma visão fria e cruel da existência. O protagonista narra os últimos anos da sua vida, as suas relações sexuais e amorosas com Isabelle e com Esther, e o seu contacto com uma seita cujos membros asseguram que o ser humano alcançará a imortalidade. Temas filosóficos, sociais, politicos e cientifícos, clonagem e sexo, juventude e velhice, vilolência e desejo, são aqui abordados. Toda a força do pensamento de Houellebecq se revela nos relatos de Daniel1, Daniel24 e Daniel25 que, separadas por dois mil anos, se cruzam numa trama onde as ideias põem o dedo na ferida.

O romance A possibilidade de uma ilha foi um dos finalistas do prémio Goncourt 2005 e o vencedor do Prix Interallié 2005.

Michel Houellebecq "A possibilidade de uma ilha" Dom Quixote
imagem de Craig Larotonda



Inocência

Eu que procuro a paz e a detesto,
que sonho as Babilónias, já sabendo
o cansaço que delas hei-de ter,
eu que tudo amo... e nada quero,
embora sempre em busca doutra coisa,
donde tiro ainda a força dos meus braços?

Adolfo Casais Monteiro (1908-1972)

O 4.º reino

André Kertész [Meudon,France]1928
Uma bala entra na pedra. Faz buraco. Animal impaciente e rápido (a bala). Nos tijolos de pedra contamos uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete. Sete balas. Umas por cima das outras. E há pelo menos mais uma que acertou no menino. E uma outra que acertou no pai. O pai tentava protegê-lo dos tiros, mas não protegeu o filho todo. Não lhe tapou por completo o corpo com o seu corpo. Também se encolhia, ele próprio, o pai. Porque o pai não é a mãe. Ao todo, no mínimo, nove balas. Duas que mataram dois seres vivos, e sete balas na pedra.
(...).
Gonçalo M. Tavares in. "água, cão, cavalo, cabeça" caminho
imagem de Kurt Halsey


Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

A imagem-tempo, cinema 2


Gilles Deleuze, numa obra dedicada ao «fenómeno» cinematográfico, no início dos anos 1980, provocou um encontro extremamente original entre a filosofia e o cinema. Desde então, a maneira de pensar, de teorizar ou de fazer a sua história sofreram uma transformação radical. O cinema, segundo Gilles Deleuze, serve-nos de directriz num percurso que apresenta instâncias extremamente problemáticas que o autor aprecia como uma arte do devir, classificando, por vezes, intempestivamente as suas imagens.

Gilles Deleuze, proeminente filósofo francês, nasceu em 1925. Frequentou o Liceu Carnot, em Paris, e estudou filosofia na Universidade de Sorbonne entre 1944 e 1948. Foi na faculdade que conheceu, entre outras figuras, Michel Tournier e François Châtelet.
Leccionou Filosofia no ensino secundário até 1957, ano em que começou a ensinar história da Filosofia na Sorbonne. A partir de 1960, e durante quatro anos, foi investigador no Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), tendo sido depois professor na Universidade de Lyon. Só em 1987 abandonou o ensino, depois de uma longa carreira como historiador de filosofia.
O seu primeiro livro, publicado quando Deleuze contava apenas 23 anos, intitulava-se “Empirismo e Filosofia”. Em 1968, foi publicada a sua tese de doutoramento, “Expressionismo na Filosofia: Spinoza”. Em 1987, Deleuze conheceu Féliz Guattari, com quem escreveu um conjunto de livros influentes, nomeadamente “Anti-Édipo — Capitalismo e Esquizofrenia” (1972). Durante os anos 80, Deleuze escreveu uma série de livros sobre cinema e pintura. O seu último livro, uma colecção de ensaios sobre literatura e algumas questões filosóficas, foi publicado em 1993.
Em 1995, Deleuze pôs termo à sua vida, atirando-se de uma janela do seu apartamento em Paris.


Gilles Deleuze "A imagem-tempo, cinema 2" assírio & alvim
imagem de Kurt Halsey


Campo dos infelizes

Farto da minha busca de ilhas,
rebanhos mudos, verde morto,
quero ser margem, ser baía,
de belos barcos ser um porto.

A minha praia quer sentir-se
pisada a vivo com pés quentes;
queixa-se a fonte a oferecer-se,
quer refrescar sedes ardentes.

E tudo quer a sangue estranho
subir, ir afogar-se a esmo,
até um outro ardor de vida,
nada ficar quer em si mesmo.

Gottfried Benn (1886/1956) in. "50 poemas" relógio d'água

Escutar...

Stuart A Staples [Leaving Songs] Beggar's Banquet 2006