se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar morro de aflição.


"Acreditava que a sua obra se podia reduzir a um único texto. Aquele."

in "Eis-me acordado muito tempo depois de mim, uma biografia de Al Berto" edições quasi

Fotografia de Paulo Nozolino: Lisboa, Escadinhas do Duque, 1984 (colecção da Frenesi)

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou adormecida nesta "bica" e para acordar terei de apagar tudo da memória. Não tenho palavras para exprimir o que tudo isto provocou em mim (sou pequena demais).

Sei apenas que é muito bom ler em português o que se escreve em português e ver em português por olhos portugueses (sem apelos a nacionalismos).
Gosto da minha identidade.

Anónimo disse...

há já algum tempo que esperava uma biografia de al berto. é uma outra lente para os sismos internos que ele provoca. obrigada, quasi.