NEM SEMPRE AOS POETAS APETECEM AS ESTRELAS


Apetece-me não sei porquê uma história de formigas
De formigas assexuadas negras nítidas e rápidas
Com olhos fantásticos colhendo miríades de imagens
E inúteis os olhos das formigas
Desenhadas como um oito ou como um sinal de infinito
Muitas corteses atarefadas prejudiciais
Clericais sociais subtílissimas pequenas
Formigando no chão
No chão onde florescem os cardos e as cores
No chão onde assenta a carne ansiosa das mulheres
E os joelhos dos homens
No chão onde ecoa a voz repugnante dos pregadores
E a voz das juras e dos negócios
No chão onde cai o suor dos aflitos
E o suor dos amorosos
E o suor dos operários
E o suor dos gordos
No chão onde andam os pés e estalam os escarros
No chão das guerras e das famílias correctas
E dos vasadouros e dos jardins
E do pus verde dos mendigos
E das chagas rendosas e das rendas custosas
E das doidas furiosas
E das rosas
E das airosas e das feias e dos bispos e dos triunfadores
E dos cretinos e das virgens
E dos remédios e dos males
E das vertigens e dos abismos
E das cismas
E dos sismos
E dos vermes do ventre e das sonecas
E dos ludíbrios e dos hábeis
E da força dos garantidos
E das sementes

Apetece-me não sei porquê uma história de formigas
A grande invasão das formigas multiplicando-se
Cobrindo a face da terra e a dos homens e das mulheres
Entrando-lhes pelos narizes para roerem os olhos por dentro
E fazendo bulir as coisas mortas e as vivas
Com o espantoso treme-luz irisado e magnífico
Dos seus reflexos negros e a substituírem todas as cores

Na grande montanha uma mulher enorme
Nua e infame
Tem as pernas escachadas sob as pregas do ventre
E sob as pregas do ventre seu sexo negro
É o grande formigueiro do mundo

Vive?

As formigas esvaziaram-na da enxúndia e substituíram-na
Só lhe deixaram a pele por fora para ainda haver branco visível
E como pêlos ampliados excitados e crescentes
Cobriram e desceram o vale
Enroscaram-se nas árvores
Desinquietaram a placidez das pedras
Forraram as aldeias e as cidades os animais e os homens

Que é do ciúme e das angústias?
Que é do amor e das palavras?
Que é das carícias e dos dentes?
Que é das renúncias e dos crimes?
Que é das tentações
Das promessas
Dos desejos
Dos apetites
Das fúrias?
Que é de todas as músicas?

O sol inútil cobre um mar negrejante onde os reflexos são como os olhos das moscas
E um silêncio tremendo finge de paz no mundo
Uma paz de silêncio com formigas

Formigas
Formigas
Formigas
Formigas


texto e imagem de António Pedro

2 comentários:

lebredoarrozal disse...

este poema é fantástico:)

Anónimo disse...

caro Miguel...
António Pedro...o poema é muito bom...palavroso que baste...sobretudo se tivermos em conta que vem da safra de um homem que em 1936 escrevia isto..."A poesia precisa cada vez menos de palavras.A pintura cada vez mais de poesia".Gosto da sua poesia e da sua pintura. já tenho muitas dúvidas quanto ao seu posicionamente.è que vem muitas vezes referido como tendo sido um dos nomes grandes do surrelismo...e afinal não é bem assim.António Pedro era um "dimensionista"...e por aqui me fico.

Cumprimentos