Tonino Guerra 1920/2012



AMOU TANTO

Agora era velhinha e não conseguia sentir-se tomada de qualquer sentimento em relação a coisa alguma, mas tinha amado muito.
Esperava ainda encontrar-se com algum ser que se movesse sobre a crosta da terra.
Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos, saía com um guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada.
Depois, chegou a Primavera, e todas as manhãs e todas as tardes, com as mãos, tocava as pedras quentes e enxutas. Foi um amor sereno e sem traições que durou até à sua morte.

Tonino Guerra, in "Histórias para uma noite de calmaria" assírio & alvim, 2002
trad. Mário Rui de Oliveira


CANTO NONO

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raizes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.


Tonino Guerra, in "O Mel" assírio & alvim, 2003
trad. Mário Rui de Oliveira

1 comentário:

Sandra R. disse...

Que lindos!