ovelha negra…


Alegoria do mundo e da condição humana, Santa Maria do Circo é a história de um grupo de artistas de circo que, ao chegar a uma cidade fantasma tão desolada quanto eles, decide erguer um novo mundo, passando a viver em busca da sua própria redenção.
Num caminho percorrido às escuras, onde se misturam a tragédia e a ironia, a dor e o humor negro, Santa Maria do Circo não é mais um romance tipicamnete latino-americano, herdeiro do "Realismo Mágico". David Toscana, um dos mais originais escritores dos nossos tempos, prefere o rótulo de "realismo Descarado".
Catarse do Homem ao analisar o essencial e o acessório de uma nova ordem social, o resultado é um romance inesquecível, que se pode resumir numa ideia que sobressalta o leitor: afinal, o mundo é um grande circo sem espectadores.

David Toscana, "Santa Maria do Circo" oficina do livro, 2010
trad. Jorge Fallorca

COM PAIXÃO E HIPOCONDRIA

Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía

Margarida Vale de Gato, in "Mulher ao mar" mariposa azual, 2010

escutar...


Funki Porcini [ ON ] ninja tune, 2010

Angela Ismailos [ Great Directors ] 2009

leitura recomendada...


«Esta educação é dialéctica. A literatura faz de nós melhores observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom na própria vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida. E assim sucessivamente.»

JamesWood, "A mecânica da ficção" quetzal, 2010
trad. Rogério Casanova

para crescer forte…



Trazias no peito a ferrugem líquida dos relógios. Arrancava-te as horas como pregos. Depois ficávamos deitados a observar os animais brancos.

Não sabíamos nada. Não tínhamos nada.

Apenas soprávamos a cana da loucura — e tremíamos.


Vasco Gato, in "A prisão e paixão de Egon Schiele" & etc, 2005
pint. Egon Schiele

reedição…


«Sempre acompanhado de um caderno onde se misturam desenhos e anotações, tenho viajado pela chamada "Etiópia histórica".
Escrevo e desenho para lembrar o que é desaparecer do meu mundo habitual e continuar ainda assim vivo, podendo ver, ouvir, cheirar e falar. Faço-o para criar um testemunho gráfico do que sinto como viagens de ida e volta a um mundo ao contrário. Quando viajei pela primeira vez para a Etiópia, em 1999, ressuscitei um prazer que me tinha negado durante anos, desde a traumática perda de um caderno de desenhos de Tavira: o de desenhar despreocupada mas obsessivamente quando viajo. Desde então, tenho uma consciência mais aguda do que implica fixar, em caderno, clichés memoriais: enquanto viajo, o desenho não passa de um subproduto irrelevante da minha actividade de desenhador e fixador de visões, mas quando regresso a casa o desenho torna-se um precioso catalisador da memória e do imaginário.»

Manuel João Ramos "Histórias Etíopes" tinta da china, 2010


«O domínio do fantástico na arte é muito amplo e sujeito nisso a uma variedade de efectivações. Digamos sumariamente que há o fantástico realista e o realismo fantástico ou mais expressivamente o realismo irrealizante. Entendemos assim que o primeiro é uma variedade de realismo vulgar e que apenas escolhe para seu campo de operações a própria fantasia. Ele é assim, digamos, muito mais «fácil» ou pelo menos de menor originalidade. Mas há o outro, o que se se fixa no real, às vezes com um rigorismo quase «científico» como o de Kafka, em que não saímos do domínio do conhecimento mas que em dado momento oscila nos seus contornos e nos leva a darmo-nos conta de que já não estamos nos limites de relações conhecidas e estáveis. Julien Gracq sabe magistralmente estender sobre o real imediato uma neblina incerta, uma dominante de silêncio que faz sinais à outra realidade do real, um subtil transreal que nos atinge obliquamente de suspeita e mal-estar. E é aí precisamente que começa a grandeza da sua arte. Decerto o «tema» não se furta à nossa atenção. Mas o que transborda dele é que particularmente nos afecta e permanece na nossa emoção indizível e angustiante.»

Vergílio Ferreira

Julien Gracq "A Costa das Sirtes" vega, 1988
trad. Pedro Tamen

amanhã nas Livrarias…


«A Geração Beat era uma visão que o John Clellon Holmes e eu, e também o Allen Ginsberg, mas de uma maneira ainda mais louca, tivemos no final dos anos 40. Tratava-se de uma geração de tipos a par de tudo, brilhantes e loucos, que de repente se ergueram para percorrer a América. Eram sérios, curiosos, vagabundos e faziam paragens em todos os pontos do caminho, em farrapos, tranquilos, de uma hedionda beleza latente na sua graça e originalidade.»

Jack Kerouac

Yves Buin "Jack Kerouac" bertrand, 2010
trad. Ana Godinho

John Donne [ Alice in Acidland ] 1968

nova edição...


Carson McCullers "O coração é um caçador solitário" presença, 2010
trad. Marta Mendonça

O Santo Graal da Loucura...


Quem tem a bengala de Artaud? Quando me perguntam por um símbolo supremo ou imagem de loucura, penso sempre nessa bengala a que o dono mandou pôr uma ponteira de ferro com que batia violentamente nos paralelepípedos de Paris para fazer saltar chispas. A bengala estava cheia de nós e tinha duzentos milhões de filamentos e entalhes de signos mágicos. E Artaud fazia saltar chispas porque dizia que a bengala tinha o signo mágico do raio no nono nó e que o número nove foi sempre o algarismo da destruição através do fogo. Artaud perdeu essa bengala (que lhe ofereceu René Thomas) na sua estranha viagem à Irlanda, perdeu-a depois de uma zaragata em frente do Jesuit College, de Dublin. Quem tem o Santo Graal da loucura? Quem é que ficou com a bengala de Artaud? Gostava de escrever um romance onde alguém viaja até Dublin para investigar o paradeiro da bengala de Artaud. Quem tem, meus senhores, essa bengala que é o eixo central da loucura no Ocidente?

Enrique Vila-Matas, in “Diário Volúvel” teorema, 2010
trad. Jorge Fallorca
[ un homme et une femme (Claude Lelouch) ] 1966


TALVEZ NÃO SEJA…

talvez não seja sempre assim; e digo eu
que se os teus lábios tão amados tocarem
os de outro, e os teus dedos firmes agarrarem
o seu coração, como não há muito tempo o meu;
se num outro rosto repousar o teu cabelo querido
naquele silêncio que conheço, ou no dizer
de palavras trémulas que por demasiado falarem
ficam indefesas perante o espírito constrangido;

se tiver que ser, eu digo se assim for
tu que és do meu coração, manda-me avisar;
para que eu possa ir até ele, pegar-lhe na mão,
e dizer, recebe de mim a felicidade do amor.
depois hei-de voltar o rosto, e ouvir um pássaro cantar
terrivelmente longe em terras de solidão.

E. E. Cummings, in "Qual é a minha ou a tua língua?" assírio & alvim, 2008
trad. Maria da Graça Braga

MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO

«Quando trabalhei num alfarrabista — um lugar que aqueles que nunca lá trabalharam facilmente imaginam como uma espécie de paraíso onde respeitáveis cavalheiros de ar simpático folheiam eternamente in-fólios encadernados —, o que mais me impressionou foi a escassez dos verdadeiros amantes de livros. Apesar de a nossa livraria dispor de um lote de obras excepcionalmente interessante, duvido que sequer dez por cento dos nossos clientes soubesse distinguir os bons livros dos que não prestam. Snobes à cata de primeiras edições eram bem mais numerosos do que os apaixonados pela literatura, mas estudantes orientais a regatear o preço de compêndios baratos eram ainda mais numerosos, e mulheres desesperadas em busca de presentes de aniversário para os sobrinhos eram as mais numerosas de todos.
Muitos dos que cruzavam a nossa porta eram o género de indivíduos capazes de importunar tudo e todos em qualquer lugar, mas, numa livraria, dispunham de um campo de manobra especialmente vasto. Por exemplo, a encantadora velhinha que «quer um livro para um inválido» (um pedido bastante comum, diga-se), ou a outra encantadora velhinha que leu um livro delicioso em 1897 e deseja saber se lhe conseguimos arranjar um exemplar. Infelizmente, não se lembra do título nem do nome do autor, nem sequer do tema da obra, mas recorda-se, isso sim, de que tinha uma capa vermelha.(…)»

George Orwell, in "Livros & Cigarros" antígona, 2010
trad. Paulo Faria