A UMA FREIRA QUE, SATIRIZANDO A DELGADA FISIONOMIA DO POETA, LHE CHAMOU PICA-FLOR

Se pica-flor me chamais.
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber
Se no nome que me dais
Meteis a flor que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o pica
E o mais vosso, claro fica
Que fico então pica-flor.


Gregório de Matos, in "Boca do inferno" & etc, 1982

Edgar G. Ulmer [ The Black Cat ] 1934

PÂTÉ DE CAMPÓNIO Esquartejem um campónio, tirem-lhe as vísceras e desossem-no inteiramente. Cortem-no depois em pedaços do comprimento e da espessura do seu dedo mindinho.
Peguem a seguir em cinco a seis quilos de carne de salsicha e acrescentem-lhe o coração e o fígado do campónio cortados. Temperem tudo com pimenta, sal e especiarias. Metam depois no fundo de uma panela sal, pimenta, uma pequena folha de louro, tomilho cortado e uma camada de carne de salsicha. Coloquem sobre este recheio pedaços de campónio, mais uma fatia de recheio e assim sucessivamente até a panela estar cheia. Comprimam com força e ponham por cima fatias finas de toucinho de maneira a cobrir inteiramente o pâté. Voltem a temperar com sal, pimenta e um pouco mais de louro. Por fim, reguem tudo com umas gotas de aguardente e abram pequenos buracos para que o líquido possa penetrar; fechem hermeticamente com uma tampa e ponham no forno durante cerca de três horas.

Roland Topor, in "A cozinha canibal" fenda, 2000
trad. Ernesto Sampaio

brevemente...

Roberto Bolaño [ O terceiro Reich ] quetzal, 2010


Raymond Carver [ O que sabemos do amor ] quetzal, 2010


A inquietante procura de grandes escritores faz com que a maioria dos recém chegados tenham ar de sair duma estufa: dominam-se, trabalham-se, martirizam-se, aperfeiçoam-se, querem estar à altura do que deles se espera, à altura da sua época. O crítico, esse, não desiste : descobrirá custe o que custar, é a sua missão. Esta não é uma época como as outras. Todas as semanas lhe é preciso um novo objecto para lançar na arena ao som de fanfarras: um filósofo tahitiano, um grafito, Rimbaud redivivus; dir-se-ia por vezes, no meio da fiesta ritual e colorida que se tornou a nossa «vida literária», uma corneta enlouquecida que tocasse para tudo ao mesmo tempo com medo de se esquecer de alguma coisa: a saída do toro e a do cavalo do picador. A "saída" dum novo escritor oferece-nos frequentemente o espectáculo penoso duma pileca esgalgada tentando lugubremente levantar a garupa no meio dum estralejar teatral de chicotes de circo – nada a fazer; uma volta à pista e basta, fareja o estábulo imediatamente e logo corre para a mangedoura; já não presta senão para arengar ou repetir-se, ou para meter num júri literário, onde por sua vez incubará qualquer novo potro de pernas e dentes longos.

Julien Gracq, in "A literatura no estômago" assírio & alvim, 1987
trad. Ernesto Sampaio

Os nossos dois olhos não tornam a nossa condição melhor; um serve-nos para ver os bens, e o outro para ver os males da vida; muita gente tem o mau hábito de fechar o primeiro, e poucos fecham o segundo; eis a razão pela qual tantos prefeririam ser cegos a ver tudo o que os olhos vêem. Felizes os zarolhos privados desse mau olho que deteriora tudo o que vemos!

Voltaire, in "a aventura da memória e outros contos" estrofes & versos, 2009
trad. Susana Pires


NOCTURNO DE LISBOA

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.


Eugénio de Andrade
ilust. Gérard Dubois

brevemente...

George Orwell "Livros e Cigarros" antígona, 2010
trad. Paulo Faria

lições...


Depois de seis longos meses a trabalhar numa livraria como moço de recados, eis que finalmente chega a hora de atender o primeiro cliente. A excitação e o nervosismo eram enormes, finalmente iria transformar-se num livreiro a sério. Mas antes o velho livreiro, famoso por ter uma carteira de clientes invejável e responsável pela formação, decide fazer uma pequena palestra sobre as regras básicas de atendimento ao cliente.

- Presta bem atenção, que eu não duro para sempre. Em primeiro lugar estão os nossos clientes e logo a seguir empresa:

Regra n.º 1 – Cuidado com o teu tom de voz, que deve ser agradável e o mais natural possível.

Regra n.º 2 – Isto de atender tem que se lhe diga e pode não ser fácil. Nunca deves perder a calma. Ter paciência é fundamental nesta profissão. Se alguma coisa estranha acontecer, o melhor é pedires ajuda.

Regra n.º 3 – Cada pessoa é única e merece uma atenção especial.

Regra n.º 4 – Deves ser formal e nunca usar a intimidade. Deves utilizar termos como: Senhor, Senhora, por favor, queira desculpar, etc.

Regra n.º 5 – A postura e apresentação são muito importantes, os braços não devem estar atrás das costas. Atende as pessoas com um sorriso e sempre olhos nos olhos.

Regra n.º 6 – Facilita a vida ao cliente, não compliques e não inventes.

- Olha! Vem aí um cliente. Presta atenção, vou mostra-te como se faz.

Adoptando uma postura hirta diz:

- Bom dia. O Senhor deseja?

- Estou à procura do livro O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil.

O velho livreiro, olhando o cliente nos olhos e com uma voz suave, triste, tanto quanto é possível fazer-se, responde:

- Infelizmente, senhor, esse livro encontra-se esgotado há uns anos e é muito difícil conseguir um exemplar.

Desesperado, o cliente exclama:

- Isso já eu sei! Mas onde o vou encontrar se não for você a arranjar-mo?

- Obrigado pelo elogio e por depositar confiança em mim. Dê-me então 48 horas e verei o que posso fazer.

- Posso ter esperança de que mo vai conseguir arranjar?

- Farei tudo para não o decepcionar.

- Muito obrigado e até daqui a dois dias.

- Até breve, senhor.

De sorriso malicioso, mal o cliente sai, logo o velho livreiro sobe umas escadas, e tira o respectivo livro da estante.

Espantado, o livreiro novato pergunta:

- Se já tinha o livro aqui, porque é que faz o cliente ter de voltar daqui a dois dias?

Sem se atrapalhar.

- Porque este... este ainda não era meu cliente, e eu tenho uma reputação a manter.



Jaime Bulhosa

texto e imagem retirados daqui

Lhasa de Sela 1972/2010

nova edição...


Biografia imaginária, conto pitoresco, fábula filosófica, fresco histórico, simultaneamente sério e burlesco, alucinante de verdade e de invenção, fantasticamente realista e realisticamente fantástico, este livro que o autor classifica simplesmente como "romance de aventuras", contém em si mil romances diferentes, sendo ao mesmo tempo muito mais do que um romance. Estimulo para a imaginação, abrir de novos caminhos para o pensamento reflexivo, antídoto de "sonho" para o quotidiano programado, metalizado, desumanizado. Um "sonho" que não seja fuga da realidade, mas fonte de calor para a viver e modificar.

Reinaldo Arenas "O mundo alucinante" dom quixote, 2010
Albert Zugsmith [ Confessions of an Opium Eater ] 1962