PARA O CATÁLOGO DA MINHA PRIMEIRA EXPOSIÇÃO POR SINAL SURREALISTA, ESCANDALOSA, LISBOETA
Qual seria a explicação
para rolar o corpo despreocupadamente
pela vertente de uma serra
se a descida fossem cacos?
cacos de garrafas voluntárias?
Foi necessário
como o entrar numa casa
só pela necessidade de sair por ela
Deixar que pelo corpo se crivassem
os poros do mistério
Jogar por valas abertas
em sítios impróprios mas atraentes
Dançar pelas vielas da noite
como os carrinhos do tear
como os poros das horas
janelas de mim-mesmo
sem fora nem dentro
Foi mortalmente necessário o amar por contacto
como o que pelas mãos começa
e pelas mãos escorre em areia fina
Tal algumas mulheres de Picasso
que fugindo das obscenidades que lhes são dirigidas
vão refugiar-se nuas na noite em couraças de ferro
sob o vento metálico e cardíaco
das praças do Chirico
Hoje nesta planície chegado
estrangeiro como pedras
teimosamente elástico e por onde sei
arrastarem os poemas do homem
nos assobios secretos da noite
inventando pequenos animais
ditos segredos ao ouvido como esquecidas
migalhas num bolso ou pedras caras
Tudo maquinal e previsto
Haverá outras vertentes? cacos? mulheres nuas
desafiando a noite nas paisagens fortuitas?
ou sempre um Sol que vem cinicamente
todos os dias
verificar o bem e o mal ambos sem remédio
Ou possuir a planície que nunca sorri por vontade própria
devorar a chuva que a excitação lhe mata
esconder ou fazer esconder
pelas preocupações diárias
os agigantados sossegos da morte tirana
irmã lapidar desfeita
Acordar lentamente
a todas as quatro horas das manhãs
para surpreender em flagrante
os idílios amorosos na pintura antiga
e assistir ao pudor que sei que há
do lado de lá de todas as figuras pintadas
suspender as emoções alheias
arrancar os botões do exagero
só os que são úteis e por isso se chamam
botões
virar por um atalho mais perto e sem saída
andar alheio como os funerais dos outros
ou uma gota de água que se recusa ao dilúvio?…
Fernando Lemos, in "A única real tradição viva, antologia da poesia surrealista portuguesa" assírio & alvim, 1998
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