«Não procurei olhar para ela durante a viagem; com os olhos postos na luz que oscilava elástica no caminho de terra, não precisei de a olhar para lhe ver a cara, para em convencer de que a cara ia estar, até à morte, em dias luminosos e povoados, em noites semelhantes à que atravessámos, enfrentando a indubitável, fátua, ilusória aproximação dos homens; com o pequeno nariz que revelava, quase em qualquer posição da cabeça, as suas covas sinuosas, inocentes; sem convexidade, como simples esboços de olhos feitos com um lápis pardo num papel pardo de cor mais suave. Mas não era somente os homens que enfrentava, claro, os que iriam chegar depois deste de quem nos aproximávamos, e que ela faria certamente felizes sem lhes mentir, sem ter que forçar a sua bondade ou compreensão e que se separariam dela já condenados a confundir sempre o amor com a recordação da cara tranquila, das pontas de sorriso que ali estavam sem motivo nascido no pensamento ou no coração, o sorriso que apenas se formava para expressar a placidez orgânica de estar viva, coincidindo com a vida. Não era só os homens que enfrentava essa cara redonda e sem perfumes que não fazia por resistir aos safanões do carro, que se deixava balouçar, assentindo, com um cândido, obsceno costume de assentir; porque os homens apenas lhe podiam servir enquanto símbolos, marcos, pontos de referência para eventualmente pôr na vida uma ordem artificiosa e serviçal. Mas a cara também tinha sido feita para enfrentar o que os homens representavam e diferençavam; interminavelmente ansiosa, incapaz de surpresas verdadeiras, transformando logo tudo em memória, em remota experiência. Imaginei a cara, excitada, alerta, faminta, assimilando, enquanto ela afastava os joelhos para cada amor definitivo e para parir; imaginei a expressão recôndita dos seus olhos planos ante a velhice e agonia.»

Juan Carlos Onetti, in "os adeuses" relógio d'água, 2009
trad. Hélia Correia

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