MEMÓRIA, A INIMIGA

Não voltarei a colar os pedaços da memória.
O céu estalado dos puzzles não ressuscita a magia.
Aquilo de que me lembrei, só atraves de novas e suscitadas saudades me deu alguma vez impressão de vida. E assim, mais tristes e mais infelizes entre todos os homens me pareciam os que nasceram dotados com as melhores memórias. Não triunfam sobre a morte mas, cada transubstanciação que tentam, em vez de de lhes prolongar o passado mata-lhes o presente com a mais inexorável das fatalidades. Vítimas da sua insuficiência, prosseguem condenados a nada ver do novo espectáculo que desprezam, fiados numa dócil esperança de recomeços que ninguém, de resto, saberia conseguir que os satisfizessem.
Quanto a mim, tudo o que aprendi, tudo o que vi só contribuirá para o meu tédio e o meu nojo se um novo estado qualquer me não causar o esquecimento dos pormenores anteriores. Visto isso, como baptizar de inimiga uma memória obstinada a recordar?

René Crevel, in "O meu corpo e eu" hiena, 1995
trad. Luís Matos Costa

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