«O simulacro das noites comuns. E mais abaixo escrevo o sonho que nasceu há dezanove anos e que não cheguei a contar-te porque qualquer pormenor reluzente me distraiu (a nitidez de uma folha de árvore no chão, a virtualidade duma palavra resolvida na memória). Um sonho que começa num café. Um café dum país. São duas horas da manhã. Não há ninguém no café. Os criados entretêm-se com o dinheiro por detrás das paredes forradas de azulejos com barcos sem nada. Estou sozinho no café. Lá fora há um silêncio. O mesmo silêncio de um livro aberto. Chove e há um nevoeiro. Um nevoeiro tão denso que entrou já pela porta do café e se espalhou religiosamente por todos os cantos à volta do calor da minha cabeça. Abro um livro. Custa-me ler. As palavras vão-se desfazendo com a grossa humidade do nevoeiro até as páginas ficarem totalmente brancas, lisas. Folheio mais. As palavras desaparecem lentas, miraculosas. E o livro fica inútil. Tosco. Por fim, depois de acabar de folhear, ver todas as páginas e de ter repousado o livro sobre o canto mais claro e afastado da mesa um afigura pertinente sobe a porta e vem devagar, muito devagar até junto de mim. Pedinte? Não sei ainda. Só me apareceu ainda seis vezes. Não sei também porque é que ela me convida a descer os degraus que conduzem à cave e me força a abrir o ábaco e a colocar as bolas sobe o pano esverdeado. Impõe depois um número fixo. Até à carambola cem. Ela fica sentada numa cadeira. Vendo-me jogar. Eu que jogo por ela e por mim. Nunca falamos. Quando jogo por ela sinto uma força estranha nos olhos e os dedos ganham um maior equilíbrio. Parece que dormem. Ela ganha sempre na última jogada embora eu seja o campeão da Beira Litoral. Quando vou na septuagésima oitava bola e ela no caminho da octogésima segunda, um empregado assoma à esquina da cave e diz-me:
- A jogar sozinho a estas horas? Desculpe mas daqui a dez minutos temos que fechar…
E vai-se embora. É estranho que o empregado nunca tenha reparado nela. Ela está aqui ali vestida de preto até aos pés. Muito quieta, dicionário de sono. Os olhos apenas. Sabendo. Depois da última jogada enquanto eu poiso o taco e sacudo o dinheiro para o pano verde, ela levanta-se, começa a subir as escadas e na penúltima escada volta-se e diz: «a primeira vez que me ganhares será a última».
Tenho pensado muito nela. Não sei se isto é sonho mas parece que me acontece. Que é real. Que me. E penso nela. Muito. Ela. Vestida de preto e de olhos sem país. Ela, talvez a morte.»

Manuel da Silva Ramos, in “Os três seios de Novélia” dom quixote, 2008

1 comentário:

sophiarui disse...

ela - essa sombra inadiável perante o dia...

boas noites...