PREFÁCIO
Annemarie Schwarzenbach foi, durante meio século, um dos segredos mais bem guardados da literatura europeia. Não que lhe tenham faltado encómios e a atenção de escritores ilustres, Roger Martin Du Gard referiu-se ao seu «belo rosto de anjo inconsolável»; Thomas Mann (cujos filhos foram, a certa altura, os amigos mais chegados de Annemarie) descreveu-a como um «anjo devastado»; Carson McCullers, que lhe dedicou o romance Reflexos nuns Olhos de Oiro, confessou: «assim que a vi soube que o seu rosto me perseguiria para toda a vida». É verdade que lhe é mais salientada a imagem perturbante, de uma beleza andrógina e icónica, do que a força literária. Nem poderia ser de outro modo, provavelmente. A obra de Annemarie Schwarzenbach — nascida em Zurique, em 1908 — é, em grande medida, trágicamente póstuma. Só no final dos anos oitenta do XX se iniciou o processo de redescoberta de uma figura que encarna, de forma ímpar, um certo mal-estar europeu. Foi esse mal-estar que tornou Annemarie Schwarzenbach uma viajante incansável. Portugal seria um dos seus pontos de passagem e era o destino que tinha escolhido para se fixar, como repórter, em plena II Guerra Mundial, na altura em que uma queda de bicicleta a vitimou, aos 34 anos. Seria, no entanto, o Médio Oriente o cenário que ela havia de eleger como território privilegiado para uma deambulação angustiada, em busca de qualquer coisa que não saberá nunca definir com exactidão. A dependência da morfina e uma identidade sexual em confronto como seu tempo e com as normas sociais vigentes na alta sociedade suíça, onde nasceu, talvez ajudem a compreender o grito de permanente aflição que — recorrendo ao subterfúgio da segunda pessoa do singular para falar de si própria — a leva a exclamar, neste livro: «quando começaste a respirar, não foi ar que inspiraste, mas solidão». Morte na Pérsia, livro escrito na primeira metade dos anos 30 mas que se manteria inédito até 1995, é um relato de viagens como nenhum outro. Annemarie parte para tentar escapar à ascensão alarmante do nazismo na Europa mas também à família, à infelicidade amorosa e à sua própria depressão. Empreende assim uma viagem (como acontecerá nas que há-de fazer ao Afeganistão, por exemplo) em que se depara com a impossibilidade radical de fugir de si mesma. É isso que a levará a escrever: «Atrás de mim, na parede que deixava ouvir tudo, o medo escondia-se numa brecha escura.» As paisagens persas adquirem as tonalidades da melancolia e da angústia da escritora, numa associação entre o sujeito e o mundo que o rodeia que talvez só tenha paralelo nos versos célebres de Verlaine (Il pleure dasn mom coeur / Comme il pleut sur la ville), encontrando na chuva sobre a cidade o eco do seu próprio choro. É esta viagem, simultaneamente por estrada e pelos atalhos mais recônditos da alma humana, que faz de Morte na Pérsia um livro comovente.
Carlos Vaz Marques
Annemarie Schwarzenbach "Morte na Pérsia" tinta da china, 2008
trad. Isabel Castro Silva
ANNEMARIE SCHWARZENBACH nasceu em Zurique, em 1908, numa família próspera e aristocrática. Cresceu numa propriedade rural da família, regularmente visitada pela elite cultural da época. Estudou História na Sorbonne. Viveu em Berlim, cidade das artes de vanguarda, e foi aqui que se envolveu com o mundo artístico da literatura, do cinema e da música. Foi também em Berlim que encontrou espaço para exprimir a sua identidade homossexual. Activamente empenhada contra o nazismo, concebeu uma revista anti-fascista, dirigida por Klaus Mann, para a qual contribuíram alguns dos mais brilhantes pensadores e escritores da época: Hemingway, Eistein, Brecht, Cocteau.
É depois deste período que Schwarzenbach se lança às grandes viagens de muitos meses, nomeadamente ao Médio Oriente, em expedições arqueológicas: Turquia, Damasco, Jerusalém, Bagdade, Teerão. Em 1935, após uma desintoxicação de morfina e de uma tentativa de suicídio, casou-se com um diplomata francês. Entre 1936 e 1937 viajou pelos Estados Unidos, país imerso na Grande Depressão, onde faz várias reportagens fotográficas. Travou conhecimento com Carson McCullers, que viria a dedicar-lhe um romance (Reflexos nuns Olhos de Oiro, estudios cor, 1959). Voltaria de novo ao Oriente: Afeganistão, Índia.
Passou por Lisboa, onde conheceu António Ferro.
Ao longo de todos estes anos publicou diversos livros e artigos sempre na iminência de escrever a sua grande obra. Fez uma última grande viagem ao Congo Belga, antes de morrer tragicamente, com 34 anos, em consequência de uma queda de bicicleta.
4 comentários:
Nada mais que magia, um coelho retirado da cartola da calamidade...que nos compensa todo o esforço da existência.
Já estou em pulgas. Tinha lido e guardado um dossiê que saiu há cerca de 1 mês no P2/Público, mas nunca pensei que a distribuição estivesse para tão breve. Mais um para afiarmos o dente, Hugo ;)
Claro, mais um para o dente... o livro chega dia 7 de julho às Livrarias... por enquanto contentei-me apenas com um excerto do livro, um pequeno texto e prefácio...
Também guardei o dossiê do p2...
E se a capa «provisória» é assim, também estou em pulgas para ver a capa definitiva da Vera :)
O dicionário não está esquecido, vão passar por aí
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