Vivemos duas vidas — uma com os olhos abertos e uma com os olhos fechados. Com os olhos abertos percebemos o universo exterior. Com os olhos fechados exploramos o cosmos interior. Passo o dia todo com os olhos fechados a tropeçar em pessoas e coisas. É por isso que já não guio.
A CULPA
Não podemos amar uma pessoa que nos faz sempre sentir culpados.
DESENCANTO
Saio de manhã de casa para tomar um expresso no Canova. Olho pela janela e observo as pessoas que passam numa ou noutra direcção. É a mesma rua que conheço há quarenta anos. Mas a pureza já não existe. Ninguém é autêntico. Já ninguém sonha.
CALVÍCIE
A única vantagem de se ficar careca é que nos vemos livres da caspa tirando-lhe o seu esconderijo.
JULGAR OS OUTROS
Se sou cruel como autor de sátiras, pelo menos não sou hipócrita: nunca julgo o que farão os outros. Nunca censuro o que os outros fazem, à maneira de um polícia ou de um padre. Nunca me preocupo com tentativas de analisar ou de resolver os meus medos e as minhas neuroses, como um filosofo ou um psiquiatra. Se fizesse, deixaria de ter motivos para fazer um filme. A realização é a minha única e exclusiva cura, uma terapia de celulóide que me mantém de boa saúde.
VIDA
O efémero , como eu costumo dizer sempre, é uma parte constante da condição humana. Somos simples turistas numa terra chamada vida.
RELÓGIOS
Toda a gente sabe que o tempo é a morte, que a morte se esconde nos relógios. Apesar de tudo, se impusermos um outro tempo, que é alimentado pelo relógio da imaginação, podemos rejeitar a sua lei. Aí, livres da foice do triste ceifeiro, aprendemos que a dor é conhecimento e que todo o conhecimento é dor.
CINEMA E LITERATURA
Toda a obra de arte vive no meio em que foi concebida e através da qual se exprime a si própria. Adaptar um romance ao cinema significa transpor situações romanescas para outro meio que tem ritmos e uma cadência particulares. O cinema não precisa da literatura. É certo que existem excepções magnificas como a Morte em Veneza do Visconti, mas nesse caso, o realizador criou uma outra dimensão relativamente ao romance de Mann. Pegou numa obra-prima para criar outra obra-prima utilizando a fantasia mágica da linguagem cinematográfica, mas de um modo tão essencial que resulta em pura alquimia.
OS POETAS
O dinheiro está em toda a parte, mas a poesia também. O que falta são os poetas, Os produtores dizem que são poetas, é verdade, porque acreditam que têm um público. Eu faço o que faço porque é só isso que sei fazer. É como se tivesse sido feito, mais ou menos penosamente, mais ou menos felizmente, para ser realizador. A vida real não me interessa.
A FIDELIDADE
É mais fácil ser-se fiel a um restaurante do que a uma mulher.
O DECLÍNIO DO CINEMA
Sou muito pessimista porque creio que o público já não tem simpatia pelo grande ecrã. Mas não quero continuar a repetir as razões que seriam a causa da desafeição do público: a televisão, o medo de sair à noite, as repugnantes condições do cinema em Itália. O público perdeu o hábito de ir ver um filme porque o cinema perdeu o seu fascínio, o carisma hipnótico, a autoridade que outrora teve. A autoridade que outrora teve para todos nós — a de um sonho que sonhámos de olhos abertos — desapareceu. Será ainda possível que 1000 pessoas possam reunir-se às escuras e fazer a experiência do sonho dirigido por um único indivíduo?
O OUTRO EU
Às vezes, ao rever por acaso, porque nunca volto a ver os meus filmes, mas tem-me acontecido ou ver uma fotografia tirada de um filme meu, ou ver na televisão uma passagem de um deles— o Casanova, o Satyricon —, muitas vezes tem ocorrido espontaneamente a pergunta: Mas como é possível que um rapar de Rimini tenha realmente… Mas como é que eu fiz para impor a minha vontade a milhares de pessoas, para levar a cabo isto tudo? Fica-me um sentimento de estupor. Por isso devo imaginar, com relativa humildade naturalmente, que no momento em que me torno um cineasta, sou evadido por um habitante obscuro, um habitante que não conheço, que toma as rédeas da barraca na mão, que dirige tudo por mim enquanto eu ponho à sua disposição simplesmente a minha voz, o meu sentido artesanal, as minhas tentativas de sedução, ou de plágio ou de autoridade, mas na realidade ele é um outro, um outro com quem convivo, mas que não conheço de maneira directa, que não conheço senão, assim, é isso, por ouvir falar. Algumas vezes quando leio as críticas dos meus filmes, acabo por saber algumas deste outro.
Federico Fellini, in "sou um grande mentiroso, uma conversa com Damian Pettigrew" fim de século, 2008
trad. Miguel Serras Pereira
1 comentário:
cada título melhor de ler.
de quem muito ler as coisas deixadas por aqui.
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