«Perante o mundo, o indiferente não é nem ignorante nem hostil. A tua intenção não é redescobrir as sãs alegrias do analfabetismo, mas, lendo, não conceder algum privilégio às tuas leituras. A tua intenção não é andares nu, é estares vestido sem que isso implique necessariamente requinte ou desleixo; a tua intenção não é deixares-te morrer de fome, mas apenas alimentar-te. Não que queiras exactamente levar a cabo essas acções com toda a inocência, porque a inocência é um termo muito forte: somente, simplesmente, se é que esse «simplesmente» pode ter algum sentido, deixá-las num terreno neutro, evidente, desprovido de qualquer valor, e não, de forma nenhuma, funcional, porque o funcional é o pior dos valores, o mais subtil, o mais comprometedor, mas patente, factual, irredutível; que não haja mais nada a dizer senão: lês, estás vestido, comes, dormes, andas, que sejam acções, gestos, mas não provas, não moedas de troca: o teu vestuário, a tua comida, as tuas leituras deixarão de falar por ti, deixarás de te armar em esperto com eles. Não lhes confiarás a esgotante, a impossível, a mortal tarefa de te representarem.»
Georges Perec, in "O homem que dorme" presença, 1991
trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo
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