O BIGODE DE LECH W.


Já lhe tinham dito que um dia teria de me cortar, mas Lech W. era orgulhoso. Disse, nunca! Usava-me sólido como um fardo de palha. Quando falava ou sorria não se viam vestígios de lábios nem dentes. E, em média, em 53 palavras lançadas por Lech W., 29 ficavam momentaneamente presas ao meu arame farpado. Hesitantes e frágeis como um sussurro inesperado.

Todas as manhãs, ao espelho, antes de sair de casa, Lech W. gastava cerca de uma hora a preparar-me com delicadeza e pormenor: penteava-me com um pente especial; aparava-me com uma tesoura de pontas redondas; perfumava-me; aplicava-me laca e uma loção vitamínica. E finalmente, satisfeito com o resultado, estendia o lábio superior até às narinas e inspirava uma golfada do meu perfume agudo.

Na cidade, a cada ano, a nossa reputação engrossava. Já não estranhávamos por isso que nos nossos passeios ou jantares em lugares públicos, fôssemos confrontados por comentários ou piadas de paladar duvidoso. Mas, a tudo isto, Lech W. virava costas. E muito bem. Afinal, eu era a extensão física e espiritual da sua forte personalidade. "Os músculos são dispensáveis quando se possui um bigode com alma". Dizia convicto a quem o interrogasse. Além disso, Lech W. sabia que não havia mulher que me resistisse. Por isso, estimava-me tanto. Mesmo numa relação consistente, feita de afecto e perseverança existe sempre um ninho de interesses sub-reptícios. Mais do que as formas do seu rosto, estrutura física, ou libertação de feromonas, era eu que centrava atenções femininas e aglomerava desejos. O telefonema de ontem confirmara-o. Nádia, a filha do barbeiro, - uma fêmea curvilínea demais para o meu pêlo - tinha-nos convidado para uma efusão de ervas e biscoitos em sua casa na tarde seguinte.

Nessa noite, Lech W. não quis deixar nada ao acaso. Passou a ferro o seu fato preferido de linho branco e engraxou os seus melhores sapatos de verniz. Dormiu no divã estreito do quarto de hóspedes como um morto falido num caixão apertado: bigode para cima, mãos cruzadas sobre o peito. Isto, como medida profilática, pois, caso algum movimento irresponsável do sono nos arrancasse daquela posição vampírica, o chão desde logo se transformaria num despertador atento. "Um bigode atlético enterrado numa almofada em noite de premonições eróticas não é uma combinação perfeita". Disse, Lech W. antes de fechar os olhos.

Já estavam sentados frente a frente há quarenta minutos alternando trivialidades e elogios quando a filha do barbeiro descruzou as pernas, mordiscou um biscoito e sorriu. Lech. W. olhava para o interior da chávena de porcelana enquanto elogiava com alguma eloquência as propriedades medicinais daquela efusão pálida de tília: sistema nervoso central e coração. Apercebendo-se da distracção de Lech W., Nádia investiu novamente. Com a mão esquerda, sacudiu para o chão fingidas migalhas da sua curta saia, descruzando e voltando a cruzar as pernas. Perante a visão da carne e do triângulo de seda preta, o coração de Lech W. hesitou, e saltou três pulsações. "Mais um pouco de tília, querido Lech?" - questionou Nádia.

A filha do barbeiro regressou da cozinha com o bule fumegante. Paralisado como um espantalho, Lech W. fotografara todos os movimentos produzidos por aqueles passos com isco: a anca basculante; as nádegas duras e arrogantes revezando-se em movimentos ascendentes e descendentes; as pernas torneadas por curvas e contra-curvas esculpidas por um qualquer escultor perverso. A dois passos da cadeira de Lech W., Nádia inclinou o tronco, servindo-o de mais efusão e do seu amplo decote em V. Num gesto pouco usual, Lech W. humedeceu-me as pontas içando o seu lábio inferior carregado de saliva ao mesmo tempo que me alisava o pêlo, servindo-se do indicador e polegar. Só aí me apercebi do real perigo que corria. Poupando-vos a descrições pouco dignas, digo-vos que nessa tarde-noite fui maltratado como nunca. Torcido. Amassado. Submisso. Experimentei novos espaços e sabores perdendo toda a minha elegância e postura. Por fim, acabei por adormecer, exausto e desgrenhado, encostado a uma das axilas de Nádia, onde uma penugem preta de cheiro cortante fitava-me ameaçadora. Pela primeira vez em muitos anos senti-me verdadeiramente um fardo, um obstáculo na vida de Lech W.

Na manhã seguinte e depois de uma noite de pesadelos onde fui ameaçado e perseguido por virilhas com dentes, acordei atordoado e húmido. Ainda tentei gritar por Lech W., ao ver-me num saco do lixo disperso entre cascas de toranja e restos de ovos e bacon frito. Depressa desisti. Pois, deitada a meu lado estava a gilete azul. Ainda com vestígios de espuma e alguns dos meus pêlos pretos agarrados à cabeça da sua lâmina tripla.


Sandro William Junqueira (inédito)

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