Leitura recomendada...



(DOENÇA)

Quando perdeu o braço direito, começou a escrever com a mão esquerda. Quando perdeu o braço esquerdo, começou a escrever com o pé direito. Quando perdeu a perna direita, começou a escrever com o pé esquerdo. Quando perdeu a segunda perna, não escreveu mais.
Como soldado, tinha sido um mártir. Mas com 105 centímetros, nunca passaria de um escritor menor.

Fernando Dinis


O PRIMEIRO AMOR

Com o passar dos anos, o ursinho de peluche foi trocado por um lego, o lego foi trocado por um livro, o livro foi trocado por uma consola, a consola foi trocada pelo primeiro amor, o primeiro amor foi trocado por uma mulher, a mulher foi trocada pelos filhos, os filhos foram trocados pelo trabalho, o trabalho foi trocado pela solidão, a solidão foi trocada pelo ursinho de peluche. Um homem regressa sempre ao seu primeiro amor.

Henrique Manuel Bento Fialho


DIVISÃO

Ergue-se o machado nas mãos do carrasco. Vai descer, o machado, sobre o pescoço do condenado. Um, dois segundos e a cabeça seguirá a sua vida, deixando o corpo para trás. Por mais racional que seja, o cérebro humano, nesta situação, é sempre iludido pela aparência de liberdade: alguns segundos de consciência depois da mutilação são a camuflagem do facto de a vida ter acabado. O machado atinge o ponto superior e começa a descida. Um pensamento: e agora? Uma dúvida: onde acaba a vida? O homem não consegue ver o machado na mão do carrasco, não sabe quando o seu corpo se dividirá em dois (nota: o corpo de um homem não foi feito para ter duas parte autónomas), não pode contar o tempo até à sua morte. Resta-lhe a imaginação: onde está o machado neste momento? A imaginação por si só nunca tem medo.
Pelo contrário, é no enorme vazio entre a imaginação e a realidade que reside o medo.

João Carlos Silva


UM DESERTO NO DESERTO

Pegou no comando da televisão. Nada. Chuva. Na cozinha, de frigorifico aberto, reparou que não tinha comida para encher o estômago que já havia horas estava em sinal de alerta. Deitou-se. A cama, outrora habitada por fortes tempestades nocturnas, parecia um deserto. Deitado no meio da cama, sentia que poderia percorrer um quilómetro para a esquerda e outro para a direita. Na rua, não havia ninguém que lhe interessasse. Não tinha família, não tinha mulher, não tinha filhos, não tinha amigos.
Nos últimos tempos, começara a sentir um forte aperto no estômago. Não um daqueles que indiciam um novo amor. Um aperto de pânico, de desespero, de querer morrer. Se aquela vida pequena, vazia e desinteressante, igual a tantas outras, nunca lhe dissera nada, naquele momento, menos lhe dizia.
Tentou ligar o rádio. Zero. Procurou uma tesoura. Cortou as unhas dos pés. Tomou banho. Queria ser um suicida higiénico.

Paulo Rodrigues Ferreira


EXCESSO DE POESIA

Ia todos os dias à biblioteca e todos os dias era o primeiro a chegar. Pedia um livro de poesia e sentava-se de frente para a entrada, lendo e fantasiando. Sempre que a porta se abria, descolava disfarçadamente os olhos dum poema e observava quem entrava. Andou nisto anos a fio, entre versos, rimas e sonhos, procurando a mulher da sua vida. Quando a encontrou perdeu-a em poucos minutos.
Na realidade, não teve prosa para ela.

Fernando Gomes


in "primeira antologia de micro-ficção portuguesa" exodus, 2008
selecção e organização de Rui Costa e André Sebastião

Sem comentários: