QUERIA SER ACONTECIMENTO

Queria ser acontecimento. Imaginava-me partitura. Era desajeitado. A caveira que, mau grado meu, substituía a maçã que amiúde levava aos lábios, só eu a via. Punha-me a um canto para mordê-la correctamente. Dado que não é possível andar a passear nem pretender fazer o amor com um fruto semelhante entre os dentes, decidi, quando tinha fome, dar-lhe o nome de maçã. E já não me incomodou mais. Só mais tarde me apareceu o objecto que me embaraçava em forma gotejante, mas sempre ambígua, de poesia.

René Char


AS REALIDADES
(fábula)

Era uma vez uma realidade
com as suas ovelhas de lã real
a filha do rei passou por ali
E as ovelhas baliam que linda que está
a re a re a realidade.

Na noite era uma vez
uma realidade que sofria de insónia
Então chegava a madrinha fada
e realmente levava-a pela mão
a re a re a realidade.

No trono havia uma vez,
um velho rei que se aborrecia
e pela noite perdia o seu manto
e por rainha puseram-lhe ao lado
a re a re a realidade.

CAUDA: dade dade a reali
dade dade a realidade
A real a real
idade idade dá a reali
ali
a re a realidade
era uma vez a REALIDADE.

Louis Aragon


MEMÓRIA

Apenas um minuto
E já voltei
De tudo o que passou nada guardei
Um ponto
O céu mais amplo
E no último momento
A lanterna que passa
O passo que se ouve
Detém-se alguém entre tudo o que vai
Deixa-se andar o mundo
E o que está lá dentro
As luzes dançam
E a sombra estende-se
Já não há espaço
Olhando para a frente
Numa gaiola onde salta um animal vivo
O peito e os braços repetiam o gesto
Uma mulher ria
Voltando a cabeça
E aquele que chegava tinha-nos confundido
Nenhum dos três se conhecia
E nós éramos já
Um mundo cheio de esperança

Pierre Reverdy


NOCTURNO DAS VACILAÇÕES FAMILIARES

Há noites que terminam numa estação! Há estações que terminam na noite! Quantos carris não atravessámos de noite! Tenho o corpo dorido dos ângulos salientes do vagão, à noite; dói-me ainda o deltóide. Quando esperávamos a irmã mais velha ou o papá, aquilo acabava sempre de maneira que seria melhor não contar: com o par de sapatos regado pela farinha do pão. Mas tenho, numa estação, um irmão antipático: chega sempre no último momento (tem lá as suas ideias); e então é preciso abrir uma mala que o criado não trouxe ainda; e, quando chega à bilheteira, não sabe ainda para que estação deve dirigir os vagões: hesita entre Nogent-sur-Marne e Ponts-de-Cé e outras localidades. A mala está aqui, aberta. Não comprou ainda o bilhete e as lanternas a gás debalde procuram transformar a noite em dia e o dia em noite. Há noites que terminam numa estação e estações que terminam na noite. Ah, maldita hesitação, foste tu que me perdeste e bem longe das vossas salas de espera, ó estações!

Max Jacob


in Franco Fortini "o movimento surrealista" presença, 1980
tradução António Ramos Rosa

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