São João da Ribeira (Rio Maior), 27 de Fevereiro de 1933


FUGITIVO DA CATÁSTROFE

Eu sou um fugitivo da catástrofe
mulher que tens por nome solidão
Envolto numa aura de tristeza
alumbro com profunda voz de órgão
obscuros territórios da imaginação
Nunca na tua vida te ouviram cantar
a tua juventude restaurada
É em Madrid que longe de ti
do teu único rosto oposto à solidão
Deixaras de servir havia muito
sulfúricas profundidades demoniacas
e o mundo foi triste para sempre
Somos da terra quando sob a terra
temos uma pessoa de família
e há costumes de pássaros velozes
espaço de solidão e esquecimento
Vê-se que um morto está muito sozinho
choras à chuva choras duas vezes
À cor da claridade do crepúsculo
por teres chorado no ventre da mãe
havias de nascer de olhos abertos
o meu entretimento é sentar-me a esperar
os visitantes das meus pesadelos
Era uma quinta-feira era um dia
assim aprenderei a ser um homem
criatura hermética e hostil
de intuição forjada da desdita
Conheço os utensílios do bem-estar
se não receio deus temo os materiais
e fujo dessa peste da insónia
do universo da imaginação
da matéria cansada do manejo
Um meio-dia unânime na terra
ultrapassei a margem do conhecimento humano
os mensageiros da concupiscência e
definitivamente solitário
venci a fantasia pelo menos
Até então não morrera ninguém
por isso não havia cemitério
Como se em algum lugar do ar
a música existisse realmente
as pessoas velozmente andavam
com seus pés sigilosos pela casa
Se um único nome alguém teve alguma vez
e que com dignidade o transportou até morrer
e num estado de alucinada lucidez
conheceu os deliciosos peixes das insónias
no inútil costume de dormir
na fidelidade sua eterna à vida
realidade tão reconfortante
como esse deslumbramento resplendor da alegria
eu canto os grandiosos pés caminhadores
por um desolador esgotamento
no volume do pão quando amanhece
na clepsidra secreta do meio-dia
que me chega intacta a distância
Cheguei aqui onde hoje estou
por uma alheia secreta madrugada e
vi a mulher sem peso nem volume
cheirando às flores murchas dos cabelos
Meu deus como arrancar à solidão os mortos
a essa morte que há dentro da morte?
Inclusive os mortos envelhecem
obedecendo à sucessão dos anos
Que é das ruas antigas de grinaldas e flores dos
salmos inteligíveis da alegria
da lâmpada de azeite acesa para sempre?
Aconteceu no átrio das begónias:
ao alvedrio da morte abandonados
ninguém mais reparou no seu amor
Eu transporto sardinhas portuguesas
estou fora do alcance dos cuidados
apesar das pressagias chuvas do outono
Resta-me ainda o café isso me resta
um silêncio odoroso a flores murchas
num ajuste de contas com a vida
Sou alto como a própria solidão
mas sob aquela madrugada lúgubre
com a obstinação recôndita dos mortos
eu sofro muito mais por possuir um nome
Quando mordias um secreto pranto
nos bocejantes domingos da morte
gostava de andar de quarto em quarto
entre as algas da minha intimidade
Nesta outonal paixão dos meu sentidos
já entristeces na distância larga
cavada como vala entre nós dois
Coração condenado à inteira incerteza
custou-lhe enormemente a descobrir
os privilégios da simplicidade
pelo ar azulado da neblina
Sempre o melhor amigo é o que acaba de morrer
Uma tarde de agosto oh o mês de agosto
chovia tristemente nessa tarde
Passei aquela tarde a ver cair
uma chuva miúda nas begónias
sítio onde apodrecem os afectos
um animal feliz um artesão sem nome
Passei aquela imensa triste tarde
a ver pela janela os velhos plátanos
por fim a invencível claridade do verão e celebrei
um honrado contrato com a solidão
naquela ao fim imensa noite de cavalos
à solta num novel jardim de nardos
Comi melão já nos finais do verão
quando aprendia a versificação latina
e contemplei a minha solidão
Cada dia mais próximos da morte vemos nela
uma mulher de cabelo afinal comprido
cava profundidade do silêncio
O que se pode é contemplar a chuva
espero que passe a chuva pra morrer após
os sóis de três verões consecutivos
Disponho por cadeiras os meus mortos
o tempo que gastavam em gastar-se
segundo um centro de recordações
E são recordações indestrutíveis
um comboio que passa toda a tarde
os prados da definitiva morte
a criança outonal e solitária
perdida entre variadas violetas
à hora prima das amendoeiras
os salmos lúgubres do fim da tarde
Encontro-me nas vértebras do sábado
vou até ao passado por desfiladeiros
murmúrios de gerânios já antigos
na última manhã da minha terra
Não quero saber nada nada importa
Há é gente que acerta gente que erra


Ruy Belo

in "Sião" frenesi, 1987
org. Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião

Sem comentários: