NARCISO

Não me crio nem me invento, aceito-me como sou na minha humanidade... e com nervos, com músculos, com as voltas do cérebro para imaginar e as voltas dos intestinos para a vida, dentro das voltas da vida, não como se andasse sozinho, mas torto e acompanhado, triste e com a pele alegre de olhar os outros e de sentir o vento através da camisa e sobre as pálpebras fechadas, como nas tardes de moleza em braços de mulher.
Faço dos meus joelhos escada para os meus ossos, e em tudo de cima é que ponho a minha carne cheia de cerebrosinhos à flor da pele, tal como nasci.
Por isso, Narciso pelos meus dedos, sinto-me a vida que tinha de viver, e gosto dos meus olhos – segredos duma alcova aonde me possuo.

António Pedro, in "antologia poética" angelus novus, 1998
pintura: António Pedro [ Rapto na Paisagem Povoada ] 1947

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