«No final ela morre e ele fica sozinho, embora na realidade tivesse ficado sozinho vários anos antes da morte dela, de Emília. Digamos que ela chama-se ou chamava-se Emília e que ele chama-se, chamava-se e continua a chamar-se Júlio. Júlio e Emília. No final Emília morre e Júlio não morre. O resto é literatura:
[…]
Gazmuri não é importante, Júlio é que é importante. Gazmuri tinha publicado seis ou sete romances que em conjunto formam uma série sobre a história chilena recente. Quase ninguém os compreendeu bem, salvo talvez Júlio, que os leu e releu várias vezes.
Como é que Gazmuri e Júlio acabam por se unir?
Seria excessivo dizer que se unem.
Mas unem: um sábado de Janeiro Gazmuri espera Júlio num café de Providencia. Acaba de pôr ponto final num novo romance: cinco cadernos Colón inteiramente manuscritos. Tradicionalmente é a mulher quem se encarrega de lhe transcrever os cadernos, mas desta vez ela não quer, está cansada. Está cansada de Gazmuri, não lhe fala há duas semanas, por isso Gazmuri sente-se esgotado e desamparado. Mas a mulher de Gazmuri não é importante, o próprio Gazmuri importa muito pouco. O velho telefona, então, à sua amiga Natália e a sua amiga Natália diz-lhe que está muito ocupada para transcrever o romance, mas recomenda-lhe Júlio.
Escreves à mão? Hoje em dia ninguém escreve à mão, observa Gazmuri, que não espera a resposta de Júlio. Mas Júlio responde, responde que não, que usa quase sempre o computador.
Gazmuri: então não sabes do que falo, não conheces a pulsão. Há uma pulsão quando escreves no papel, um ruído do lápis. Um estranho equilíbrio entre o cotovelo, a mão e o lápis.
Júlio fala, mas não se escuta o que diz. Alguém deveria aumentar-lhe o volume. A voz rouca e intensa de Gazmuri, pelo contrário, retumba, funciona:
Escreves romances, esses romances de capítulos curtos, de quarenta páginas, que estão na moda?
Júlio: Não. E acrescenta, apenas para dizer algo: O senhor recomenda-me que escreva romances?
Repara nas perguntas que fazes. Não te recomendo nada, não recomendo nada a ninguém. Julgas que marquei encontro contigo neste café para te dar conselhos?
É difícil conversar com Gazmuri, pensa Júlio. Difícil mas agradável. Em seguida Gazmuri começa a falar literalmente sozinho. Fala sobre diversas conspirações políticas e literárias, e enfatiza, em especial, uma ideia: é preciso cuidado com os maquilhadores de mortos. Tenho a certeza de que tu gostarias de me maquilhar. Os jovens como tu aproximam-se dos velhos porque gostam que sejamos velhos. Ser jovem é uma desvantagem, não uma qualidade. Devias saber isso. Quando eu era jovem sentia-me em desvantagem, e agora também. Ser velho também é uma desvantagem. Porque nós, os velhos, somos fracos e necessitamos não só das lisonjas dos jovens, necessitamos, no fundo, do seu sangue. Um velho necessita de muito sangue. Talvez a única coisa que te sobra, agora que reparo bem em ti, seja sangue.
Júlio não sabe o que responder. Salva-o um longo riso de Gazmuri, um riso que dá a entender que pelo menos algo do que acaba de dizer é a brincar. E Júlio ri com ele; acha piada estar ali, a fazer de personagem secundário. Quer, dentro do possível, manter-se nesse papel, mas para se manter nesse papel tem de certeza que dizer algo, algo que o faça ganhar relevância. Uma piada, por exemplo. Mas a piada não lhe sai. Não diz nada. É Gazmuri quem diz:
Nesta esquina acontece algo muito importante para o romance que vais transcrever. Por isso marquei encontro contigo aqui. No final do romance, precisamente nesta esquina acontece algo importante, esta esquina é importante. Já agora, quanto pensas cobrar-me?
Júlio: Cem mil pesos?
Na realidade Júlio está disposto, inclusive, a trabalhar de graça, embora, naturalmente, não lhe sobre muito dinheiro. Parece-lhe um privilégio tomar café e fumar cigarrilhas com Gazmuri. Disse cem mil como antes disse bom-dia, maquinalmente. E continua a escutar, fica um pouco atrás de Gazmuri, concorda com tudo, embora quisesse muito mais escutar tudo, absorver informação, ficar, agora, cheio de informação:
Digamos que este será o meu romance mais pessoal. É bem diferente dos anteriores. Resumo-to um pouco: ele fica ao corrente que uma garina da juventude morreu. Como todas as manhãs, liga o rádio e ouve dizer o nome da mulher no obituário. Dois nomes e dois apelidos. E é assim que tudo começa.
Tudo o quê?
Tudo, absolutamente tudo. Fica então combinado, telefono-te assim que tomar uma decisão.
E que mais acontece?
Nada, o mesmo de sempre. Entra tudo na merda. Fica então combinado, telefono-te assim que tomar uma decisão.»
Alejandro Zambra, in "Bonsái" teorema, 2008
tradução de Jorge Fallorca
via frenesi
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