És como a flor dos agonizantes

que é invisível mas seu aroma entra

na sombra nasal e é a delícia,

tudo na vida, durante algum tempo.


Antonio Gamoneda, in "livro do frio" assírio & alvim, 1999

imagem de Greg Spalenka

— És a minha irmã, a minha filha, a minha mãe.

— Também gostava de ter sido a tua mulher.

escutar...


kalabrese [ rumpelzirkus ] muve, 2007

NOTAS PARA O DIÁRIO

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário — o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida — e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.


Al Berto, in "horto de incêndio" assírio & alvim, 2000
foto. Luísa Ferreira

MULHERES

Aqui estão espraiadas, as mulheres. Viram-se e reviram-se sobre as toalhas para bem se tisnarem por todos os lados. Trazem sacos e maridos para a areia. E filhos. De repente, sentam-se. Gritam: Ó Luís, ó Bruno Manuel, ó Fernando Jorge, ó Mafalda Sofia, ó Joana Filipa! Maternais e enfastiadas, vigiam os pequenoa. Ralham com os maridos como se estivessem a cantar uma canção de trabalho. Querem-nos à Mão.
Entram no mar pé ante pé. Quando a primeira onda lhes dá uma umbigada, soltam um bando de gritinhos. Afoitam-se, cabeça muito levantada para que a cabeleira não se molhe. E, então, começam a sorrir. Não há, nesse momento, quem as arranque do mar. Mas, com a muita, muita água, um pensamento indesejável assalta-lhes as imaginativas cabecinhas: o peixe que, do largo, pode vir, ligeiro, engolfar-se-lhes entre coxas.
Regressam às toalhas, aos guarda-sóis. Chamam, pelos seus nomes aos pares, os pares de crianças. Esbofeteiam-nas, beijam-nas, prodigalizam-lhes sanduíches de areia. Entretanto, os maridos foram dar uma volta.
Mulheres! Afinal sempre sozinhas sob a rosa do sol...

Alexandre O'Neill, in "uma coisa em forma de assim" edic,1980

imagem de Billy de Vorss

"Nada me comove mais do que a imagem ou o cheiro do que é bom e recto. O que é mesquinho e mau depressa se esgota, mas compreender o que é bom e nobre é a um tempo tão difícil e ainda assim tão cheio de encanto"

Robert Walser, in "Jakob Von Guten" relógio d'água, 2005

SOBRE UMA MANHÃ QUALQUER

Manhã de ouro lhe poderíamos chamar se de ouro fora a primeira manhã
Adão inconfessado, e nada saberemos da primeira manhã
se afinal de ouro se afinal de prata.
Ainda possível ter sido de estanho?
A primeira manhã assim imaginada estanho e a cena desenrolar-se-á
com maçãs de estanho, aves de estanho, rios de estanho...
Adão não seria de estanho?
Adão inconfessado, e nada se saberá da manhã original.
A primeira manhã, a primeira luz, a primeira vida, a primeira lua
Tu, querida, o desejarias saber, o sei,
era teu desejo saber de que material fora a primeira manhã!
Evidentemente que (e aqui já cansaço a obcecar a caneta)
evidentemente que dizia
etc., etc.
e a respeito da primeira manhã afinal
que não interessa sabê-lo.
Olha, morre como o cigano, o pior é ires à escola.
Ah, os poetas são decididamente afectados.
Que raio de ideia esta de saber da primeira manhã?
Londrina a de hoje, e basta para tomar um excelente duche quente
com a água a pôr fervura na pele
e mais nada.
Da primeira manhã, Adão que se faça poeta e no-lo diga que metal.

António Gancho, in "o ar da manhã" assírio & alvim, 1995

[ Estéticas do Cinema ] dom quixote, 1985


O cinema inaugura uma poética da modernidade, ao constituir-se não apenas como um novo processo técnico de produção artística, mas como uma nova era na contemplação e na compreensão do fenómeno estético.
Podemos acreditar que o filme, mais ainda do que a fotografia, se constitua nessa fabulosa memória involuntária do presente, a ponto de tornar eterno tudo o que é transitório e que alguma vez foi registado pela objectiva de uma câmara.
As primeiras vistas cinematográficas assemelham-se bastante às deambulações do olhar do passeante ocioso e curioso, sempre disponível, pelas ruas da cidade. E Walter Benjamim nota a condição paradoxal do espectador das salas escuras, que é, fundamentalmente, a do examinador que se distrai. É que o filme não é só a travessia dos desertos povoados que nos deslumbram no continente do visível, mas também o enigma que interroga a descoberta do inconsciente visual que seria, a bem dizer, literalmente invisível sem a existência do cinema.
A presente antologia de textos sobre as diversas estéticas, que marcam com a sua influência aquela que pode, provavelmente, considerar-se a arte decisiva do nosso tempo, inclui trabalhos de Walter Benjamim, Bela Balazs, Sergei Eisenstein, Pier Paolo Pasolini, Brian Handerson, Daniel Dayan, Christian Metz e Jaques Aumont.

Eduardo Geada

«O real chegado ao espírito já não é o real. O nosso olhar é demasiado pensativo, demasiado inteligente.
Duas espécies de real:

1.º) O real bruto registado tal qual pela câmara.
2.º) O que nós chamamos real e que vemos deformado pela nossa memória e os falsos cálculos.

Problema. Fazer ver o que tu vês por intermédio de uma máquina que não vê como tu vês. E fazer ouvir o que tu ouves por intermédio de outra máquina que não ouve como tu ouves.
O real não é dramático. O drama nascerá de uma certa conjugação de elementos não dramáticos.»

Robert Bresson

in, "estéticas do cinema"


Em parceria com a editora Assírio e Alvim, o colectivo de design VIVÓEUSÉBIO apresenta, no pavilhão 60 (Assírio e Alvim) da Feira do Livro de Lisboa, o primeiro número de um projecto editorial que procura explorar novas interpretações gráficas a partir do imaginário poético de autores portugueses. Cada edição conta com uma tiragem limitada de 30 exemplares únicos e numerados. O poema Adiamento de Álvaro de Campos foi o texto escolhido para a estreia deste projecto gráfico.

ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...


Álvaro de Campos

BRASILEIRA

O vento não varria as folhas
O vento não varria os frutos
O vento não varrias as flores...

E a minha vida não ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores de folhas...

O vento não varria as luzes
O vento não varria as músicas
O vento não varria os aromas

E a minha vida não ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos...

O vento não varria os sonhos
E não varria as amizades...
O vento não varrias as mulheres...

E a minha vida não ficava
Cada vez mais cheia
De afectos e de mulheres...

O vento não varria os meses
E não varria os teus sorrisos...
O vento não varria tudo!

E a minha vida não ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.


Mário Cesariny, in "nobilíssima visão" assírio & alvim (1991)

fotografia de Fernando Lemos

OS CAFÉS

Locais de encontro, de convívio, de critica, de conspiração até, os Cafés de Lisboa contribuíram grandemente para a sobrevivência de uma cultura à margem da cultura oficial.
Nos Cafés, apesar da vigilância fascista sempre presente, falava-se discutia-se, por vezes sem quase prudência. Desde a anedota política, passando pelas teses sobre arte e literatura, até ao plano acabado de revolução, tudo os Cafés possibilitaram.
Palavras ausentes da Imprensa e da Rádio, palavras rigorosamente proibidas pela policia faziam parte do vocabulário quotidiano das conversas dos Cafés.
Numa época em que o acesso ao livro normal era dificil e perigosa a leitura da obra revolucionária, os Cafés, através dos seus frequentadores, proporcionaram que titulos não fossem esquecidos e temas novos conhecidos e discutidos. Na maior parte dos casos conheciam-se os livros, menos pela leitura directa do que pela informação prestada por uma amigo, às vezes por um conhecido de ocasião.
Os Cafés foram, de certo modo, centros naturais e espontâneos de uma resistência mental activa.
Talvez se pudesse falar mesmo de uma cultura oral, urbana, nascida e desenvolvida nos Cafés.
Os revolucionários de Café, os políticos de Café, os intelectuais de Café, foram expressões utilizadas sobretudo com o objectivo de minimizar uma forma de vida, incipiente, é certo, mas persistente e livre.
Afinal, num meio asfixiante, numa cidade policiada em todos os sentidos, foram desses revolucionários, políticos e intelectuais de Café que saíram verdadeiros revolucionários, políticos e intelectuais.
A palavra, o pensamento estavam nos Cafés.


António José Forte, in "uma faca nos dentes" parceria a. m. pereira (2003)

fotografia de Herberto Aguiar, 1958/1959 (?)
em pé, da esquerda para a direita: Pepe Blanco e Henrique Varik Tavares.
sentados: Mário Cesariny, António José Forte, Virgílio Martinho e Benjamim Marques.
local: Café Royal

O QUE CAI DOS DIAS...


O RAPTO DA EUROPA


Na manhã seguinte, nevava em Zurique. Saí do hotel com o chapéu de feltro e o meu guarda-chuva, e fui tomar o pequeno almoço ao velho e famoso Café Odeon, de que sempre se disse que Lenine, assíduo cliente daquele estabelecimento, pôde trocar mais de uma palavra com James Joyce, outro cliente habitual. Ah, o Odeon! Lembrei-me que Mata-Hari tinha ali debutado como bailarina. E a seguir imaginei uma cena impossível, imaginei Lenine a beber um café, enquanto lançava olhares furtivos a um exemplar de “Gente de Dublin”. Quem imagina a cena é Enrique Vila-Matas que reaparece aqui para nos evocar um certa ideia da Europa. Fim de tarde em Zurique, neva lá fora, Lenine, à mesa do café, imaginando uma revolução. James Joyce escrevendo a história moral da Irlanda. Mata-Hari ensaiando os primeiros passos na intriga internacional. A presença invisível, ainda, de Goethe, Hermann Hesse, Thomas Mann. A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kirkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. (…) Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa, escreve George Steiner no ensaio A ideia da Europa, incontornável para percebermos para onde caminhamos, quando se comemoram os cinquenta anos do Tratado de Roma. A Europa dos cafés, lugar de encontro de poetas, escritores, artistas, filósofos, revolucionários, “flâneurs”. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Odessa: num café do guetto judeu, Isaac Babel põe em movimento os seus gangsters de papel. Copenhaga: Kierkegaard troca a universidade pelos cafés da cidade e lança as bases do existencialismo. Lisboa: no Martinho da Arcada, Pessoa inventa a mais profunda genealogia da literatura portuguesa. Fim de tarde em Paris: através dos vidros molhados por uma chuva oblíqua Walter Benjamin observa a coreografia de guarda-chuvas correndo apressados no Boulevard Saint Germain: a modernidade a ser pensada no espaço interior de um café para onde se transporta o mundo exterior. Este o primeiro axioma que Steiner convoca para pensar uma Europa, hoje, em perda de identidade. Desapareceram, entretanto, os cafés. Os que sobrevivem já não são habitados pela ideia de infinito, mas antes por uma espécie de melancolia generalizada dos europeus, servindo apenas de espelho retro-reflector de um esplendor apropriado à admiração de turistas nostálgicos, refinados ou fetichistas. Bruxelas é a capital do vazio, escreve Peter Sloterdijk no livro Se a Europa se levanta. A Europa como laboratório para a experiência do fim do mundo, conforme uma visão completamente apolítica da existência. Em vez dos cafés, os não-lugares sem alma dos centros comerciais. Em vez da conversa mobilizadora à mesa do café, a delegação política em expertocratas que gerem as coisas por nós, de modo a realizar o projecto de nos tornarmos os últimos homens, como afirmou Sloterdijk, em entrevista à Actual, publicada no Sábado passado. Permanece válida a pergunta de Czeslaw Milosz: Estes homens de negócios de olhares nulos e sorrisos atrofiados… É a esta vérmina que chegou uma civilização tão delicada, tão complexa? Em vez do infinito, o consumismo, como se a Europa tivesse perdido para sempre a sua alma faustiana habitada pela ideia de infinito. Assim como se eclipsaram os cafés da “velha” Europa, também a paixão metafísica se evaporou da nova cartografia espiritual europeia. A literatura já não é a grande máquina da modernidade. Quem são, hoje, os herdeiros da Mitteleurope? Quem transporta o fogo de Mann e Musil? Na Inglaterra, os grandes escritores são indianos, sul-africanos, ou emigraram para a América. Sebald já cá não está. A literatura encontra-se numa encruzilhada. Ou é uma literatura ensimesmada, sobre o nada. Ou reporta-se a inutilidades pós-modernas, a representações de consumo enjoado. Para onde vai a Europa herdeira das duas cidades, Atenas e Jerusalém? Com a queda do marxismo na tirania bárbara e na nulidade económica, perdeu-se um grande sonho de - como Trotsky proclamou - o homem comum seguir as pisadas de Aristóteles e Goethe. Nesta espécie de laboratório do consumismo em que se transformou a Europa, ainda guardamos algumas referências - a santidade do pormenor diminuto, dizia William Blake - de que é feita a nossa diversidade. Mas cada vez mais somos turistas de nós próprios, consumidores do efémero, perdidos no labirinto do novo Minotauro. Como olhar, então, o touro sem sucumbir ao fascínio do seu olhar que como um espelho restitui à Europa o seu feitiço, levando-a à perdição? Acredita, apesar de tudo, Steiner que o sonho pode, e deve ser, sonhado novamente. É, porventura, apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da vulnerabilidade trágica da “condition humaine” poderiam constituir-se como base. É entre os filhos frequentemente cansados, divididos e confundidos de Atenas e de Jerusalém que poderíamos regressar à convicção de que ainda é possível enganar o Minotauro e inverter o ardil a favor da Europa. Talvez começar por aqui.


texto de João Ventura publicado aqui

LILASES

Quando por fim a cifra infinita
que dois mundos combinam
esplender inteiramente seus motivos

a cada um caberá olhar
na lâmina de ouro
um nome inefável

o que buscámos sem um gesto
o que dissemos sem uma palavra


José Tolentino Mendonça, in "a noite abre meus olhos" assírio & alvim (2006)

imagem de Gianpaolo Pagni
Charles Fourier [ quadro analítico da corneação ] & etc, 1980


CORNUDO ALERTA, ou CAUTELOSO, é um finório que sabe todas as manhas do amor, fareja de longe os galanteadores tomando disposições sábias para os derrotar. O general mais dextro não deixa, porém, de experimentar revezes na carreira. Por isso este possui vantagens assinaláveis sobre os concorrentes e assim mesmo acaba em submeter-se ao habitual destino, passando a cornudo e não dos menores.

CORNUDO MÍSTICO, ou SANTARRÃO, é o que evita o perigo rodeando a sua mulher de padres e pessoas devotas, entre as quais deixa intrometer-se um que outro tartufo, um que outro libertino que hão-de pregar-lhos em plena testa, para maior glória de Deus.

CORNUDO ORTODOXO, ou DOUTRINADO, é o catecúmeno da profissão, o que tem fé, crê nos princípios e nos bons costumes. Tal como as pessoas de bem, pensa que os libertinos dizem mais do que fazem; e as mulheres honestas são em maior número do que se imagina, não havendo bom proveito em acreditar levianamente nas más-linguas. Se chega a ter suspeitas, tão rodeado está, e catequizado, que decide acreditar nos verdadeiros princípios da profissão e ter forte esperança no natural bom fundo da esposa, na sã influência que sobre ela a moral exerce.

CORNUDO VIRTUOSO é um apaixonado em ciências ou artes que se toma de afecto por todos os Mestres. Se é melómano, basta uma ária de cornamusa para enfileirar o executante nos seus favoritos, deixando que faça intimidade com a sua mulher a quem, de resto, recomenda calorosamente os amantes pelas relações que mantêm com a arte. Ela avalia-os, no entanto, sob outros pontos de vista.

CORNUDO POR MILAGRE é aquele cuja mulher, há muito estéril, encontra outro homem com mais jeito e engravida perante a surpresa geral, não deixando de atribuir o facto a uma novena, a uma promessa feita à Virgem ou, mesmo, a uma viagem a termas que lhe facultou agentes prolíficos de mais de uma espécie. O marido que todos felicitam calando, embora, muito do que pensam, hesita como S. José entre o riso e a cólera: «Tenho cá umas dúvidas que não há maneira de conseguir tira...» Transforma-se assim, num CORNUDO POR MILAGRE e o seu rebento num verdadeiro filho de bênçãos.

CORNUDO DE REPOUSO é o casado com uma mulher tão feia que, nem ele nem os outros. a imaginam capaz de arranjar amante. Será este o caso que á mulher confere melhores possibilidades de um divertimento tranquilo, pois amantes há-de encontrá-los sempre, mais não seja com liberalidades ou pelo capricho de alguns homens em gostar das feias.

CORNUDO OPTIMISTA, ou JOVIAL, é o que vê tudo cor-de-rosa, se diverte com as intrigas da mulher, bebe à saúde dos cornudos e consegue distrair-se com sucessos que aso outros fazem arrancar mãos cheias de cabelos. Não será de todos o mais sábio?


Charles Fourier (1772-1837)
Frank Capra [ arsenic and old lace ] 1944

INCONSCIENTE SEVERO

Fui ao banco pedir dinheiro,
muito dinheiro e muito tempo
para pagar, talvez por inteiro,
na semana se S. Nunca, à tarde.
Deus sabe o que me custou
vestir de parvo e respeitável,
para que me dessem crédito!
Do outro lado, só à gravata é amável
o dono da sinfonia que perguntou
se era a primeira vez, se tinha
bens de garantia, prédios e coisas
assim, julgando pelas unhas,
medindo pelo relógio, achando
possível saber tudo sobre mim.
Claro que fingi ir às do cabo,
mostrei-me indignado, preocupado
com a burocracia e com o desplante
de tanta indignação. És mesmo def!
Carrega aí na tecla três, a ver se vês,
meu pequeno anarquista português!
Já cheio de papel, segui para a conquista:
nada de encargos, menos muito menos
de compromissos, a própria namorada
a sorrir de complacência, cá vamos
para nada em direcção à impunidade,
que a grana tudo compra: adeus
até mais ver, emprego, até à vista
desarmada se percebe que não volto
a esta pífia, pobre, disfarçada democracia!
A minha hipoteca é um livro de poesia.


Manuel Fernando Gonçalves, in " fechamos a alma, ao fim da tarde, com estrondo e animação" & etc (2007)
Annie Leibovitz [ William S. Burroughs ] 1995

fotografia encontrada aqui

ESTOU FARTO

Eu um dia farei de mim
uma vida diferente.

Que caminho tão triste
ladeado de lagos sem ondas
pássaros sem asas
canteiros de flores empalhadas.

Onde está a luz?

Estrela, penumbra e sonho?

Um dia verás com olhos de uma criança
um simples arco-íris
como um sorriso no céu.

Henrique Risques Pereira, in " transparência do tempo" quasi

CHARLES BUKOWSKI

Nenhum carteiro sério deixará as tuas cartas húmidas — um canto que seja — quando o segundo dilúvio vier.
No primeiro dilúvio, acima das águas, salvaram-se em barco, os animais, as mulheres e os homens. Afogadas ficaram as plantas e ainda toda a correspondência entre o primeiro homem e a primeira mulher. Se antes do dilúvio a literatura era boa ou não, nunca se saberá. Pois salvaram-se os animais, um homem e uma mulher (e ainda um velho, que praticamente não conta), mas desprezou-se a documentação escrita.
Entre certos homens que conheço, certas mulheres com quem dormi e alguma literatura, eu não hesitaria no momento do segundo dilúvio: deixava afogar esses sujeitos e salvava a literatura. Mas tal é apenas uma opinião.


Gonçalo M. Tavares, in "biblioteca" campo das letras (2004)

A GAVETA APRESENTA :


Dias 16, 17, 18 e 19 de Maio – Teatro da Trindade (Sala principal)

Dramaturgia e Encenação:
Sandro William Junqueira

Interpretação:
António Rodrigues, Luís Manhita, Miguel Cordeiro, Pedro Martinho e Rui Cabrita.

Eles são dois senhores que habitam o mesmo “Bairro”.
Simples, lógicos, lúdicos, lúcidos e divertidos.
Dois senhores muito particulares e distintos. Tanto no pensar como na acção.
Serão, sem mais: “ a inteligência filosófica feita quotidiano”.
A partir desta premissa, o desafio, é criar um espectáculo único que se divide em dois dias: que permite a cada espectador, em cada dia, uma nova experiência e leitura do espaço teatral, um renovado e mais amplo campo de reflexão, a liberdade de operar intelectualmente e de responder aos diferentes estímulos que lhe chegam de cena, e a oportunidade de estabelecer uma nova dinâmica entre público-espectáculo, público-teatro, teatro-teatro e público-público.
Assim teremos: dois senhores, uma peça, dois dias - dois tons distintos. Uma ideia inédita.

Sandro William Junqueira



para mais informações visite o blog dos nossos senhores aqui

Encontrei-me
dentro de um grito
entrelaçado de músicas
e de espaços vazios.

Encontrei-me
dentro de um livro
cheio de vozes
de linguagens estranhas.

Encontrei-me
num tempo antigo
abafado por memórias
amontoadas entre estrelas.

Encontrei-me
a olhar a flor do campo
esquecida na margem
deste caminhar pela vida.


Henrique Risques Pereira, in "transparência do tempo" quasi (2003)

imagem de Gianpaolo Pagni
Andy Warhol [ Dennis Hopper ] 1971
Vincent Gallo [ buffalo '66 ] 1998

escrito, realizado e interpretado por VINCENT GALLO...
banda sonora escrita e composta por VINCENT GALLO...

Edward Hopper [ compartment C car 293 ] 1938


Quando te afastas
Uma fina poeira de gelo
Cobre os ramos de todas as árvores
E delicadamente
Atravessas os destroços
Em que deixas tudo o que amaste.

Luís Falcão, in "pétalas negras ardem nos teus olhos" assírio & alvim (2007)

Pensar sem ruptura mínima, sem astucia no pensamento, sem nenhuma dessas súbitas imposturas a que a minha medula está habituada como posto-emissor de correntes.
A minha medula diverte-se por vezes com esses jogos, deleita-se com esses jogos, com esses raptos furtivos a que preside a cabeça do meu pensamento.
Por vezes, bastar-me-ia uma só palavra, uma pequena palavra sem importância, para ser grande, para falar no tom dos profetas, uma palavra testemunho, uma palavra exacta, uma palavra subtil, uma palavra bem macerada na minha medula, surgida de mim, que se mantivesse no extremo último do meu ser,
e que, para toda a gente, não fosse nada.
Sou testemunho, sou o único testemunho de mim próprio. Esta crosta de palavras, estas imperceptíveis transformações do meu pensamento em voz baixa, da minha pequena parcela do meu pensamento que eu pretendo que estava já formulada, e que aborta,
sou o único juiz capaz de lhe medir o alcance.


Antonin Artaud, in "o pesa-nervos" hiena (1991)

Maio de 68 [ propaganda ]








NÃO HÁ PALAVRAS

Tocas um corpo, sentes-lhe o repetido tremor
sob os teus dedos, o cálido andamento do sangue.
Observas-lhe o lânguido amolecimento,
as suas sombras corporais, o seu desvelado esplendor.
Não há palavras. Tocas um corpo; um mundo
enche agora as tuas mãos, empurra o seu destino.
Estira-se o tempo nos pulmões
silva como um chicote rente aos lábios.
As horas, o instante, detêm-se,
extrais aí a tua pequena parcela de eternidade.
Antes foram os nomes e as datas,
a história tão clara e lúcida de dois rostos distantes.
Depois, aquilo a que chamas amor,
talvez se transforme em promessa arrancada,
muro erguido que pretende encerrar
aquilo que só em liberdade pode ganhar-se.
Não importa, agora nada importa.
Trocas um corpo, nele te fundes,
apalpas a vida, real, comum. Já não estás só.


Juan Luis Panero, in "antes que chegue a noite" fenda (2000)

imagem de Pep Montserrat



Confusion in her eyes that says it all.
She's lost control.
And she's clinging to the nearest passer by,
She's lost control.
And she gave away the secrets of her past,
And said I've lost control again,
And a voice that told her when and where to act,
She said I've lost control again.

And she turned around and took me by the hand and said,
I've lost control again.
And how I'll never know just why or understand,
She said I've lost control again.
And she screamed out kicking on her side and said,
I've lost control again.
And seized up on the floor, I thought she'd die.
She said I've lost control.
She's lost control again.
She's lost control.
She's lost control again.
She's lost control.

Well I had to 'phone her friend to state my case,
And say she's lost control again.
And she showed up all the errors and mistakes,
And said I've lost control again.
But she expressed herself in many different ways,
Until she lost control again.
And walked upon the edge of no escape,
And laughed I've lost control.
She's lost control again.
She's lost control.
She's lost control again.
She's lost control.

DESCRIÇÃO DA MENTIRA

O teu corpo assobia debaixo dos arandos. Insinuas a liberdade das bestas protegidas pela conduta dos ventos?

Livra-te da liberdade antes de entrares em mim.

Tu é veloz e obscura entre os arandos acesos; és profunda e bela como um rosto na água; a tua pele é doce. Porém a minha língua é sagaz

e os teus ouvidos escutam sem misericórdia.

O silêncio e os seus círculos, o ácido que depositas sobre a minha saúde,

a sujidade fervendo dentro da minha alma:

este é o preço da paz. Recorda-te.


(...)

A indiferença está na minha alma. É a velhice da misericórdia.

Esta é a hora mais antiga e o meu coração resvala sobre a astúcia.

Ainda os meus dedos são ágeis nas ulceras e alcançam rostos protegidos pelo desprezo porém a minha lucidez está oferecida à morte.

Tu és voraz no crepúsculo:

tua resistência é húmida; tua língua, fértil na minha boca;

sorves o medo com os teus lábios; tua nudez é grande.


Porém o prazer é máscara da memória.



António Gamoneda, in "descrição da mentira" quasi (2007)

"Maravilha que nada tem a oferecer, a democracia é ao mesmo tempo o paraíso e a sepultura de um povo. A vida só através dela tem sentido; mas ela tem falta de vida... Felicidade imediata, desastre iminente — inconsistência de um regime ao qual não aderimos sem nos rasgarmos nos ferros de um dilema que atormenta."

E. M. Cioran, in "história e utopia" bertrand (1994)

imagem de Pep Montserrat
Sean Penn [ the indian runner ] 1991

The Indian Runner foi o primeiro filme escrito e realizado por Sean Penn em 1991, e é talvez o seu melhor filme como realizador.
Interpretado por David Morse, Viggo Mortensen, Valeria Golino, Patricia Arquette, Charles Bronson, Dennis Hopper, Benicio del Toro entre outros,The Indian Runner conta-nos a história de dois irmãos unidos pelo sangue mas separados pelas suas diferentes maneiras de viver e ver a vida, um deles é o Sheriff local (David Morse) tem esposa, um filho e gosta das trivialidades do dia-a-dia, o outro (Viggo Mortensen) é uma pessoa revoltada, anti-social e paranóica vivendo à margem da lei. Acompanhado de uma maravilhosa banda sonora (Janis Joplin & Big Brother & The Holding Co.,The Band, Jefferson Airplane) e realizado com grande sensibilidade e maturidade cinematográfica, The Indian Runner é provavelmente o melhor papel na carreira de Viggo Mortensen.

MEDO

Durante anos, acreditei que o sono mata.
E como o sono me estimulasse a vontade de morrer, raras foram as noites em que não estreei uma morte nova.
Com a prática, aprendi a prolongar a morte, adiando a agonia do despertar.
Para minha surpresa, ou decepção, a manhã confrontava-me com a extensão da empresa.
Vítima e espectador da minha vítima, acabei por vulgarizar a morte, com prejuízo do repouso que o sono me exigia.
Hoje durmo com uma facilidade espantosa e, raramente, me lembro de adormecer.
Ou sonhar.
Sem que eu ou a morte tenhamos assinado qualquer espécie de tréguas.


Jorge Fallorca, in "longe do mundo" frenesi (2004)

fotografia de Simon Larbalestier

FIA-TE NA VIRGEM E NÃO CORRAS!

"Fia-te na Virgem e não corras, verás o tombo que levas."
O ditado é popular e encerra uma sabedoria teológica que faz inveja à própria Teologia (mariana) da libertação. Deveria, por isso, ser esculpido à entrada de todas as igrejas e capelas dedicadas à Nossa Senhora, a começar, evidentemente, pela chamada capelinha das aparições, em Fátima, e pelo soberbo santuário que domina todo aquele recinto, pretensamente sagrado, mas que, se calhar, é hoje dos mais sacrílegos recintos do mundo, onde os nomes de Deus e da Virgem são sistematicamente maltratados e vilipendiados por uma religião e um culto, cujos responsáveis maiores não só os invocam em vão, como até os invocam de forma teologicamente desviada e enganadora.


Padre Mário de Oliveira, in "Fátima nunca mais" campo das letras (1999)

imagem de Clovis Trouille

liVRO OBRIGATÓRIO ...

[ Rainer Werner Fassbinder, o amor é mais frio que a morte ] Cinemateca Portuguesa, 2007



Talvez me suceda em mim mesmo. Não sei quem mas alguém morreu em mim. Também ontem pressentia a desaparição e estava ameaçado pela luz, mas hoje é outra a faca diante dos meus olhos.


Não quero ser o meu próprio estranho, estou entorpecido pelas visões. É difícil

por todos os dias luz nas veias e trabalhar na retracção de rostos desconhecidos até que se convertam em rostos amados e depois chorar porque vou abandoná-los ou porque eles me vão abandonar.

Que

estupidez ter medo à beira da falsidade, que cansaço

abandonar a inexistência e

morrer depois todos os dias.



Antonio Gamoneda, in "ardem as perdas" quasi (2004)

imagem de Stefano Ricci
Raymond Hesse [ Vigaristas, Ladrões & Assassinos ] & etc, 2007

E se um dia o Sindicato dos VLA (Vigaristas, Ladrões & Assassinos) decidisse fazer uma greve? Na forçada ausência do Mal, que sentido e que utilidade teriam as instituições (à cabeça, a Justiça) numa sociedade pautada pelos valores do Bem?
Raymond Hesse (1884-1967), juiz de profissão e escritor bibliófilo por deleite, propõe uma resposta a tal cenário — e assiste-se ao desnudamento da hipocrisia social que reveste os apregoados valores da Virtude.
Federico Fellini [ Casanova ] 1976


CANTO VIGÉSIMO QUARTO *

A cona é uma teia de aranha
um funil de seda
o coração de todas as flores;
a cona é uma porta
que leva sabe-se lá onde
uma muralha
que se deve abater.

Há conas alegres
conas completamente loucas
conas espaçosas ou acanhadas,
conas de tostão e meio
bisbilhoteiras ou balbuciantes
e as que bocejam
sem dizer palavra
mesmo se as matas.

A cona é uma montanha
branca de doçura,
uma floresta onde os lobos circulam,
a carroça que puxa os cavalos;
a cona é uma baleia vácua
plena de escuridão e pirilampos;
a algibeira do pássaro
sua toca de dormir
um forno que tudo consome.

A cona no momento certo
é a face do Senhor,
a sua boca.

Pela cona nasceu
o mundo, com árvores, nuvens, o mar
e os homens, um de cada vez,
de todas as raças.
Da cona veio também a cona.
Diabos levem a cona!


Tonino Guerra, in "o mel" assírio & alvim (2004)

* poema "encomendado" por Federico Fellini a Tonino Guerra para o filme Cassanova