ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


Alexandre O'Neill

fotografias de Helena Gonçalves
Manuel Fernando Gonçalves ["fechamos a alma, ao fim da tarde, com estrondo e animação"] & etc, 2007


BETABLOQUEANTE

O rapaz tem vergonha de falar
das coisas que o inquietam, não
gosta de ouvir a sua voz azul
calar as outras coisas que sente.
O rapaz é bonito, é demente,
é ansioso e muito cool —
parece ter um lapso no coração
quando está onde não devia estar.

O rapaz nem parece português
moderno: é moreno e alto, robusto,
simula a mesma pele do retrato
que usa por dentro de quem gosta
de o sentir distante e perto.
Não anda de avião, decerto,
prefere voar rente à costa,
elegante e de muito bom trato
mesmo quando sobe, a custo,
para mostrar tudo o que não vês.

O lindo rapaz é tenso como uma corda,
anda descalço quando quer e pode —
que bem que cheira o perfeito dorso!
Não o chamem, não façam esforço,
não será assim que o sangue explode
e ele fica nú, fica triste, ele acorda...


Manuel Fernando Gonçalves


CONCEITO DE PESSOA

O meu conceito de pessoa é, digamos, tão interior e tão não comprometido seja com o que for, que não teria nome nenhum e não poderia designar-se por coisa nenhuma. O meu conceito interno de pessoa é um conceito a que nem se poderia aplicar o nome de pessoa porque esta vem da palavra latina persona que significa máscara. Então quando digo «está aqui uma pessoa», é a mesma coisa que dizer: está aqui um homem mascarado ou uma máscara de homem, que me pode aparecer com muitos aspectos. A pessoa pode ter várias personae, várias máscaras com que aparece. Então podemos supor que às várias máscaras que aparecem ou que sem aparecer existem, a pessoa pode dar nomes diferentes, escondendo, deixando no silêncio, na obscuridade, na indefinição, aquilo que a pessoa acha fundamental.


Agostinho da Silva, in "vida conversável" assírio & alvim (1994)

imagem de Greg Spalenka
Jan Saudek [ vendedor de carne branca ] 1997

... and the oscar goes to...

Antonin Artaud [ auto-retrato ] 1947


DESCRIÇÃO DE UM ESTADO FÍSICO

uma sensação de queimadura ácida nos membros, músculos retorcidos e em carne viva, o sentimento de ser de vidro e quebrável, um medo, uma retracção perante o movimento e o barulho. Uma desordem inconsciente do andar, dos gestos, dos movimentos. Uma vontade perpetuamente tensa para os gestos mais simples,
a renuncia ao gesto simples,
uma fadiga arrasante e central, uma espécie de fadiga absorvente. Os movimentos por refazer, uma espécie de fadiga de morte, a fadiga do espírito pela aplicação da mais simples tensão muscular, o gesto de pegar, de se agarrar inconscientemente a qualquer coisa,
a sustentar por uma vontade aplicada.
Uma fadiga do princípio do mundo, a sensação do seu corpo como um fardo, um sentimento de fragilidade incrível, que se torna numa dor despedaçante,
um estado de entorpecimento doloroso, uma espécie de entorpecimento localizado na pele, que não impede nenhum movimento mas altera a sensação interna de um membro, e confere à simples posição vertical o valor de prémio de um esforço vitorioso.
Localizado provavelmente na pele, mas sentido como supressão radical de um membro, e não apresentado já ao cérebro senão imagens de membros filiformes e algodoados, imagens de membros longínquos e fora do seu lugar. Uma espécie de ruptura interna da correspondência de todos os nervos.
Uma vertigem em movimento, uma espécie assombro oblíquo que acompanha todo o esforço, uma coagulação de calor que condensa toda a extensão do crânio, ou se desfaz em pedaços, placas de calor que se deslocam.
Uma exacerbação dolorosa do crânio, uma cortante pressão dos nervos, a nuca obstinada em sofrer, as têmporas que se cristalizam ou se petrificam, uma cabeça espezinhada por cavalos.
(...).


Antonin Artaud, in "o pesa-nervos" hiena (1991)


REQUIEM PARA UMA JUKEBOX

Pensavas tu, errando título.
O Manel do Estádio informa-te
de que a máquina foi só a arranjar
e vem depois da Páscoa,
para semear de tristeza ou escárnio
os mesmos fados. Ainda bem.

Na mesa em frente, duas putas
antigas têm a razão suprema
de confundir Fernando Pessoa
com Fernando Pessa — o que
morreu cedo, aqui perto, e é agora
"grande" nas bocas que não o
leram nem amaram. Ao outro,
pelo contrário, parece faltar
qualquer vocação para a morte.

Mas eis que entra o Rui de Castro,
com o seu inescapável bagaço
e a consequente voz acanalhada.
Vai mudar a hora, é sexta-feira
de Paixão. E se estamos aqui
sentados é apenas para que o tempo
passe, não doam tanto as certezas
— que é como quem diz a morte.

Da televisão, espreita-nos a vida
em technicolor do crucificado.
Eu sou o pão que escurece,
o cordeiro do infortúnio — diria
um qualquer desses émulos de Celan
que só chegam ao cair da noite
e não gostam de Cesário.
Mas a melhor poesia portuguesa
está agora sentada neste café
e não se chama Manuel de Freitas
nem deixará como ela inúteis vestígios
de paixão, pedacinhos de ócio,

o milagre incerto da multiplicação da morte.


Manuel de freitas, in "blues for Mary Jane" & etc (2004)

ilustração de Pedro Carvalheiro [Lisboa noites de vidro], 1991
Jean Cocteau [ ópio ] difel, 1984


«O ÓPIO é uma decisão a tomar. O nosso único erro é querermos fumar e compartilhar os privilégios dos que não fumam. É raro um fumador deixar o ÓPIO. O ÓPIO é que o deixa arruinando tudo. É uma substância que escapa à análise, viva, caprichosa, capaz de se voltar bruscamente contra o fumador. É um barómetro de sensibilidade doentia. Em certas alturas húmidas os cachimbos escorrem. O fumador chega à beira-mar e a droga incha, recusa-se a cozer. A aproximação da neve, de uma trovoada, do mistral, tornam-na ineficaz. Certas presenças faladoras retiram-lhe toda a virtude.
Em suma, não existe amante mais exigente que a droga que leva o ciúme ao ponto de castrar o fumador.»

«O tédio mortal do fumador curado. Tudo o que fazemos na vida, mesmo o amor, fazemo-lo no comboio expresso que corre em direcção à morte. Fumar ÓPIO é deixar este comboio em andamento; é ocuparmo-nos de outra coisa em vez da vida e da morte.»

Jean Cocteau


Em 1928, Jean Cocteau entra numa clínica para uma cura de desintoxicação do ÓPIO. Aí, escreve e desenha. O presente livro reúne alguns desenhos e um conjunto de textos escritos pelo autor; observações sobre cinema, anotações, jogos de palavras, comentários sobre literatura e escritores, opiniões sobre a poesia, a arte, a criação, mas tendo sempre presente o tema fulcral, o ÓPIO.

JIM JARMUSCH


... em Abril na Cinemateca Portuguesa...

ÓDIO ?


Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo d’outra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... não vale a pena...


Florbela Espanca

imagem de Jean-François Martin

coisas para ver antes de morrer...



[ La Jetée ] 1962

[ Sans soleil ] 1983


«existem duas espécies de imagens, uma que visa reter apenas uma simples impressão dos objectos, a outra que organiza essas imagens recebidas e as combina de mil e uma maneiras»

Voltaire

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.
Como posso, assim, viver a felicidade?

Stig Dagerman, in "a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer" fenda (1995)


Neste espaço a si próprio condenado
Dum movimento para o outro pode entrar
Um pássaro que levante o céu
E sustente o olhar

…………………………………………

Com a tristeza acender a alegria
Com a miséria atear a felicidade
E no céu inocente da visão
Fazer pulsar um pássaro por vir
Fazer voar um novo coração


Alexandre O'Neill, epígrafe ao livro "No Reino da Dinamarca", 1958

imagem de Tomasz Walenta
fotograma do filme [metropolis] Fritz Lang, 1927


Os porta-vozes do campo de trabalho social, desde a senhora neoliberal que come caviar e é maníaca pela eficiência, até ao sindicalista tipo barriga-de-cerveja, quando invocam o carácter pseudo-natural do trabalho, entram em crise de carência argumentativa. Ou, como quererão eles explicar-nos que hoje em dia três quartos da humanidade se estejam a afundar na necessidade e na miséria, só porque o sistema da sociedade do trabalho já não pode utilizar os seus préstimos?
Já não é a maldição do Antigo Testamento — «comerás o teu pão com o suor do teu rosto» — que pesa sobre os excluídos, mas uma nova e implacável condenação: «tu não comerás, porque o teu suor é supérfluo e invendável». E será isto uma lei natural? Não é senão um principio social irracional, que surge como coerção natural apenas porque, ao longo dos séculos, destruiu ou submeteu a si todas as outras formas de relação social, impondo-se de modo absoluto. É a «lei natural» de uma sociedade que se considera profundamente «racional», mas que, na verdade apenas segue a racionalidade finalista do seu ídolo, o trabalho, dispondo-se mesmo a sacrificar-lhe, a ele e à respectiva «objectividade coerciva», os últimos resquícios da sua humanidade.


Grupo Krisis, in "manifesto contra o trabalho" antígona (2003)

FRANCESCO D'ISA

Casey Parker

Lorelei Lee

Sasha Grey

Katsumi




ANTI-CORPOS

Nada é tudo como estava.
Os meus mapas de anti-corpos.
Como um lenço triste a abarrotar
De nomes.
Nomes dialogantes sangrando ao contrário.

Nada é o corpo aqui.
A casa como uma sugestão de ar,
Puxada para dentro.

Tenho medo de me recordar,
Quando os dias falam assim,
Tão baixo, que parecem reais.
Porque há dias que também me acontecem
Como espelhos improváveis.
Como quem sofre pela porta.

Mas encontrar-me-ás em alguns nomes,
Longe daqui,
Por países de um dia.

Porque há nomes que chegam ao fim
Sempre que alguém lhes toca.

Limpos.
Quietos.
Perfeitos.


Duarte Temtem, in "o poema insone" magna editora

imagem de Scott Mackowen

" LISBOA AO VOO DO PÁSSARO "



pássaros
passarinhos
passarões
todos deputados
galifões
numa
assembleia da república
com certeza
votam o aumento
dos próprios
ordenados
ou não fossem eles
deputados


Texto de Mário-Henrique Leiria, fotografias de João Freire, in "Lisboa ao voo do pássaro" forja (1979)

Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, és sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
cada instante o que perco e não vem mais.

António Franco Alexandre, in "duende" assírio & alvim (2002)

imagem de Randal Gordy Lee

CADAVRE EXQUIS I



desafio ...

— abrir o último livro que leu, ou que está a ler na página 33

— copiar a última frase completa

— "postar" aqui

... depois é só esperar o resultado

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O AMOR É O ÚNICO MITO de pura exaltação que a humanidade conheceu. O único que parte do coração do desejo e visa a sua satisfação total. O único grito de angústia capaz de se metamorfosear em canto de alegria. Com o amor, o maravilhoso perde o carácter sobrenatural, extraterrestre ou celeste que possui em todos os mitos, regressando de algum modo à sua origem para se inscrever nos limites da existência humana.
Dando corpo às aspirações primordiais do indivíduo, o amor oferece uma via de transmutações que culmina com no acordo da carne e do espirito, tendente a fundi-los numa unidade superior. O desejo, no amor, longe de perder de vista o ser da carne que lhe deu origem, sublima o seu objecto numa espécie de sexualização do universo que restabelece no homem uma coesão anteriormente inexistente.
O amor não admite a menor restrição: tudo ou nada, sendo o tudo a vida e o nada a morte.

Ernesto Sampaio, in "Fernanda" fenda (2000)

imagem de Pep Montserrat

escutar...

The Shins [ wincing the nigth away ] sub pop, 2007

TERNURA

Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume.
Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida ti Mizé! Preparei um Gin.

Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.

Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.

Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senho Esteves. Manias da Josela.

Olhei Josela.

Tinha os olhos brilhantes, havia uma ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.

Concordei. Josela manda.

Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!


Mário-Henrique Leiria, in "Casos de direito Galático, o mundo inquietante de Josela (fragmentos)" editorial república (1975)

imagem de Ray Caesar

momentos de pura nostalgia...

Brassaï [ gutter ] 1933


A RUA

É uma rua longa e silenciosa.
Ando às escuras e tropeço e caio
e levanto-me e piso com pés cegos
as pedras mudas e as folhas secas
e alguém atras de mim também as pisa:
se eu paro, pára;
se corro, corre. Volto-me: ninguém.
Tudo está escuro e sem saída,
e dou voltas e voltas em esquinas
voltadas sempre para a rua
onde ninguém me espera nem me segue,
onde sigo um homem que tropeça,
se levanta e ao ver-me diz: ninguém.

Octavio Paz

in, "correspondência literária 1" contexto (1984)


«O mais simples dos actos surrealistas consiste em vir, de revólver em punho, para a rua e atirar ao acaso, tanto quanto possível, sobre a multidão. Aquele que, ao menos uma vez, não teve vontade de acabar desta maneira com o sistemazinho de envilecimento e cretinização em vigor, tem o seu lugar muito bem reservado nesta multidão, ventre à altura do cano.»


André Breton
fotograma do filme [Freiras Perversas] Walerian Borowczyk, 1977



Diálogo entre um penitente freirático e um confessor casmurro

A um fradalhão bojudo e rabugento
Seus crimes confessava um desgraçado,
E entre eles dizia ter pecado
Com uma santa freira num convento:

Grita o frade: «Não tardam num momento
Raios mil, que subvertam tal malvado;
Que as esposas de Cristo há profanado
No santo asilo seu, sacro aposento!

«Ora diga, infeliz, como ousaria
Tal crime confessar, e acções tão brutas
A Jesus Cristo, lá no extremo dia?...»

«Padre, deixemos pois essas disputas;
Se ele me perguntasse, eu lhe diria:
Quem vos manda, Senhor, casar com putas?»


António Lobo de Carvalho (o lobo da madragoa), 1700/1787, in "se a lira pulsas e o pandeiro tocas..." & etc (1984)
fotograma encontrado aqui

DEITADOS LADO A LADO, envoltos das fatigas do dia a dia.
Paisagem fresca e calma onde passam histórias irrealizáveis, o sono repousa sobre nós.
Nenhuma espada precisava de nos separar.
Um peso delicioso, pesado na minha perna, despertou-me.
Reconheci o teu pé.
Soube então, por um homem e uma mulher que se conhecem, o que era estar deitado lado a lado.


Ernesto Sampaio, in "Fernanda" fenda (2000)

imagem de Kurt Halsey

Francis Picabia [ Les Acrobates (gymnastique banale) ] 1925


A MAIS BELA DESCOBERTA DO HOMEM É O BICARBONATO DE SÓDIO

São inúteis todos os seres da criação, os seus amores assemelham-se ao degelo das neves na primavera.
Os dias de chuva assemelham-se às férias.
Eu supero os amadores, sou um ultra-amador; os profissionais são bombas de merda.
Todos os pintores que figuram nos nossos museus são uns falhados na pintura; nunca se fala senão dos falhados; o mundo divide-se em duas categorias de homens: os falhados e os desconhecidos.
Jesus-Cristo-Stradivarius
foi um falhado,
Buda-caranguejo
foi um falhado,
Maomé-cabeleireiro
foi um falhado.

Francis Picabia, in "Jesus-Cristo Rastacuero" & etc (1994)
Francis Picabia [ F. Picabia por F. Picabia ] 1903


"Fazer amor não é moderno; no entanto, ainda é do que eu mais gosto."


Francis Picabia
fotograma de [ A Dama de Xangai ] Orson Welles, 1947

O INFINITO

Gostava de passar pela experiência de um desses espelhos em frente dos quais um outro é colocado - sentir a minha imagem multiplicar-se por mim dentro até ao infinito. Porque é isto justamente o infinito - o interior de um espelho em face do qual outro foi posto. Sempre que dois espelhos amorosamente se interpelam, qualquer deles, incorporando o outro, o atravessa e, carregando-o consigo, se coloca, perfilado e atento, do outro lado.

Luís Miguel Nava, in "rebentação"
Luís Miguel Nava [ rebentação ] & etc, 1984



DECALCOMANIA

Palavras há que, como se as coisas a que estão presas encolhessem, ganham folgas. Outras incham. Não raro os poemas são protuberâncias assim. É quando o sol se pôe entre as palavras, quando entre elas suporíamos ouvir o mar bater, que com maior intensidade se revela a purulência. Cosida interiormente ao nosso espírito, a paisagem - como se com ele formasse um nó - jamais por nós será compreendida. O mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva.

INTRODUÇÃO

Atei uma ligadura ao mundo. Seguindo uma estratégia diferente, há quem o aparafuse, ajoelhando-se na terra, ou abra nele um olho, uma pupila. Por cima dele o céu é elástico. Elástico, adesivo, eis dois dos atributos que, ao dar por acabado o livro de que este texto pode, entre outros, ser a introdução, mais me fascinam. A própria alma é elástica: podemos, assentando um dedo sobre a sua superfície e pressionando-a, levá-la a tocar nas coisas mais inesperadas. O real é um vidro pintado sob o sol berrante, as coisas prendem-se-ne ao espírito. Do mar, para não dar senão um exemplo, fiz a minha máscara integral.

CISÃO

Gostava de saber até que ponto a ideia de céu e a de unidade andam ligadas. Só assim poderia avaliar que peso tem o facto de eu sentir que o céu se encontra dividido e uma das partes se alojou trasversalmente no meu corpo. Tal é às vezes o seu peso, que me vejo constrangido a andar dobrado.

Luís Miguel Nava, in "rebentação"

Vittorio de Sica [ ladrões de bicicletas ] 1948


RAY CHARLES

Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural,
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.

Na voz, há sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de blak e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a mística do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos brancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?

Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.

Cego e negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam)
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?

Jorge de Sena – 1964


A MOEDA DO TEMPO

Distraí-me e já tu ali não estavas
vendeste ao tempo a glória do início
e na mão recebeste a moeda fria
com que o tempo pagou a tua entrada


Gastão Cruz, in "a moeda do tempo" assírio & alvim (2006)

fotografia de Ralph Gibson

UM DIA O TERÇO VAI ABAIXO


***Aparições: A Senhora de Fátima***
Egon Schiele [ auto-retrato ] 1910


25 DE ABRIL DE 1912

Ontem: Lágrimas-silênciosas, tímidas, lastimosas; gritos-fortes, insistentes, implorantes; soluços roucos-desesperados, terrivelmente desesperados. Na cama, deitado, apático enfim, mortalmente assustado, inundado de suores frios. No entanto pela minha arte e por aqueles que amo, resistirei até ao fim.

Egon Schiele, in "diário da prisão" litoral edições (1987)