A MORAL CERTA

Esperas pela moral certa como na estação de comboios o amante pela amada. Mas o comboio atrasa-se e começas a ficar nervoso. Olhas para o relógio uma e outra vez e depois para a linha vazia, e se fores de tal forma impaciente, em pouco tempo desistirás, não do amor, mas daquela mulher. E tentarás, então, se possível, logo nos minutos seguintes, encontrar uma outra companheira — quem sabe —, uma das que, estando no cais, também não tolere, nem mais um minuto, a espera.
Encontrarás, então, certamente uma mulher pior, que te deixará a vida mais desfeita e irreversível, mas tal é compensado longamente — pensas tu — pela rapidez com que deixaste de estar só.

PARA LER, REPETINDO OS MOVIMENTOS

Da mão direita à outra do mesmo homem vai por vezes uma distância obscura. Não se trata de uma parte esconder intenções ou até acções. É outra coisa.
Quando, para receberes alguém, abres os braços, a referida distância aumenta e a mão, em cada ponta, assinala um certo modo com que o teu corpo se dispersa. Quando o abraço se concretiza e nas costas do outro as mãos finalmente se reencontram, formalizam um símbolo ao mesmo desolador e esperançoso: é que só nas costas do outro as tuas duas partes se unem com uma energia digna de admiração. Experimenta, sem outro corpo no meio, unir com força, com violência até, as tuas mãos, e verás o ridículo, perceberás a diferença de intensidade.
Mas por vezes — como bem o sabes — não há outro corpo.

ACASOS

Como se da boca de um louco, há muitos anos desprovido de razão, saísse de súbito uma fórmula verbal capaz de explicar finalmente ao mundo, certos encontros do acaso juntam, definitivamente, e depois de muitos anos de desespero e desencontros, um homem e uma mulher.


Gonçalo M. Tavares, in "breves notas sobre o medo" relógio d'água, 2007

7 comentários:

gi disse...

toda a lucidez é pessimista, diria talvez cioran.
brutais e cortantes estes 'apontamentos sobre o medo'.
lembram-me fantasmas próprios.
['o medo come a alma', pois claro]

gi.

miguel. disse...

este livrinho é maravilhoso...
E. M. Cioran? ... bem observado... ;)
a procura da relação perfeição... a utopia por excelência.

gi disse...

rilke escreveu que 'todas as obras do Homem não são mais do que preparação para o projecto mais grandioso, mais exigente, mais elevado reservado à natureza humana: o mistério do amor'. cito de memória, que é como gosto mais.
utopia por excelência - é isso mesmo.
[sim e.m. cioran ;-)].
e vou mergulhar nesse abismo em forma de livrinho, assim que possível.
obrigado, miguel.

gi.

Ana Cristina Leonardo disse...

Olá Hugo! Se quiseres espreitar a Meditação na Pastelaria, o convite fica feito. Em nome do O'Neill
Uma abraço

miguel. disse...

Olá Cristina, bem vinda, claro que aceito o convite... já tinha passado por lá, mas vou voltar com mais calma...

um abraço

Inês disse...

***

bruno disse...

passava para subscrever o interesse miguelino pela obra do senhor tavares,e vejo referências ao Cioran! «Les larmes, critère de la verité dans le monde de sentiments. Larmes et non pleurs. Il existe une disposition aux larmes qui s'exprime par une avalanche intérieure. il y a des initiés en matière de larmes qui n'ont jamais pleuré effectivement. Aqui fica, de um dos melhores, o des larmes et des saints.
Abraço ao café e clientes.