BARBEARIAS

fotografia de Alexandre Delgado O'Neill


Entrei no barbeiro no modo do costume,
com o prazer de me ser fácil entrar
sem constrangimento
nas casas conhecidas.
A minha sensibilidade do novo
é angustiante: tenho calma
só onde já tenho estado.

Quando me sentei na cadeira,
perguntei, por um acaso que lembra,
ao rapaz barbeiro
que me ia colocando no pescoço
um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita,
mais velho e com espírito,
que estava doente.
Perguntei-lhe sem que me pesasse
a necessidade de perguntar:
ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança.
"Morreu ontem", respondeu sem tom
a voz que estava por detrás da toalha
e de mim, e cujos dedos se erguiam
da última inserção na nuca,
entre mim e o colarinho.
Toda a minha boa disposição irracional
morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente
da cadeira ao lado.
Fez frio em tudo quanto penso.
Não disse nada.

Saudades!
Tenho-as até do que me não foi nada,
por uma angústia de fuga do tempo
e uma doença do mistério da vida.
Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais
— se deixo de vê-las entristeço;
e não me foram nada,
a não ser o símbolo de toda a vida.

O velho
sem interesse das polainas sujas,
que cruzava frequentemente comigo
às nove e meia da manhã?
O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente?
O velhote redondo e corado
do charuto à porta da tabacaria?
O dono pálido da tabacaria?
O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver,
foram parte da minha vida?
Amanhã também eu me sumirei
da Rua da Prata,
da Rua dos Douradores,
da Rua dos Fanqueiros.
Amanhã também eu — a alma que sente
e pensa,
o universo que sou para mim —
sim, amanhã eu também serei
o que deixou de passar nestas ruas,
o que outros vagamente evocarão
com um "o que será dele?".
E tudo quanto faço, tudo quanto sinto,
tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte
a menos na
quotidianidade de ruas
de uma cidade qualquer.


Fernando Pessoa


in, "barbearias" edições rolim (1986)

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