Luís Miguel Nava [ rebentação ] & etc, 1984



DECALCOMANIA

Palavras há que, como se as coisas a que estão presas encolhessem, ganham folgas. Outras incham. Não raro os poemas são protuberâncias assim. É quando o sol se pôe entre as palavras, quando entre elas suporíamos ouvir o mar bater, que com maior intensidade se revela a purulência. Cosida interiormente ao nosso espírito, a paisagem - como se com ele formasse um nó - jamais por nós será compreendida. O mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva.

INTRODUÇÃO

Atei uma ligadura ao mundo. Seguindo uma estratégia diferente, há quem o aparafuse, ajoelhando-se na terra, ou abra nele um olho, uma pupila. Por cima dele o céu é elástico. Elástico, adesivo, eis dois dos atributos que, ao dar por acabado o livro de que este texto pode, entre outros, ser a introdução, mais me fascinam. A própria alma é elástica: podemos, assentando um dedo sobre a sua superfície e pressionando-a, levá-la a tocar nas coisas mais inesperadas. O real é um vidro pintado sob o sol berrante, as coisas prendem-se-ne ao espírito. Do mar, para não dar senão um exemplo, fiz a minha máscara integral.

CISÃO

Gostava de saber até que ponto a ideia de céu e a de unidade andam ligadas. Só assim poderia avaliar que peso tem o facto de eu sentir que o céu se encontra dividido e uma das partes se alojou trasversalmente no meu corpo. Tal é às vezes o seu peso, que me vejo constrangido a andar dobrado.

Luís Miguel Nava, in "rebentação"

1 comentário:

lebredoarrozal disse...

o nava provoca-me falta de ar.