REQUIEM PARA UMA JUKEBOX

Pensavas tu, errando título.
O Manel do Estádio informa-te
de que a máquina foi só a arranjar
e vem depois da Páscoa,
para semear de tristeza ou escárnio
os mesmos fados. Ainda bem.

Na mesa em frente, duas putas
antigas têm a razão suprema
de confundir Fernando Pessoa
com Fernando Pessa — o que
morreu cedo, aqui perto, e é agora
"grande" nas bocas que não o
leram nem amaram. Ao outro,
pelo contrário, parece faltar
qualquer vocação para a morte.

Mas eis que entra o Rui de Castro,
com o seu inescapável bagaço
e a consequente voz acanalhada.
Vai mudar a hora, é sexta-feira
de Paixão. E se estamos aqui
sentados é apenas para que o tempo
passe, não doam tanto as certezas
— que é como quem diz a morte.

Da televisão, espreita-nos a vida
em technicolor do crucificado.
Eu sou o pão que escurece,
o cordeiro do infortúnio — diria
um qualquer desses émulos de Celan
que só chegam ao cair da noite
e não gostam de Cesário.
Mas a melhor poesia portuguesa
está agora sentada neste café
e não se chama Manuel de Freitas
nem deixará como ela inúteis vestígios
de paixão, pedacinhos de ócio,

o milagre incerto da multiplicação da morte.


Manuel de freitas, in "blues for Mary Jane" & etc (2004)

ilustração de Pedro Carvalheiro [Lisboa noites de vidro], 1991

5 comentários:

ana marta disse...

O Estádio. Ainda bem que conheci esse lugar. Passei lá boas noites, boas tardes, sempre bem bebidas. Com gente a entrar e a sair, sempre a tentar encontrar o sentido último para as coisas que nos rodeiam. Com o Manel a resmungar e no fim da noite ao som da Maria da Fé.
Com as putas velhas do bairro que contavam os infortúnios do dia, mais os chulos sentados a beberricar minis. Quando se entra lá de tarde parece que o mundo lá fora parou. Lembra-me a Joaquina de sapatos de salto brilhantes a gritar contra os grandes que nos exploram e oprimem. Lembra grandes conversas, pessoas cheias de coisas para contar a uma menina que na altura era pequena e tinha sede de outras vidas. O estádio. entretanto o manel morreu. mas ainda se ouve a maria da fé. Deixei de lá ouvir outras vozes. o estádo estará ligado à minha vida, ao principio e ao fim. Ali também reside uma parte de uma nova vida que comecei. E tu estavas lá, lembras-te?
Sinto saudades daquilo ...

Menina Limão disse...

comprei o Jukebox e desiludiu-me. mas gosto muito deste poema e de um outro que aqui postaste e fui lendo e...sim, convenceu-me.

miguel. disse...

Manuel de Freitas tem muita coisa boa, e é muito bom no ensaio... recomendo dois sobre Al Berto [ "A noite dos espelhos" frenesi , "me, myself and i" assírio & alvim ], e claro [ "uma espécie de crime" & etc ] sobre Herberto Helder...
já estive com o Jukebox na mão, mas ainda não o tenho...

:)

magarça disse...

O Estádio deixou de ser o mesmo sem os resmungos do Manel..

ana marta disse...

Podes crer Margaça :)