No reverso dos anos já não sei
de que matéria é feito um coração:
desejo e medo, orgulho e agonia
ardendo em labaredas cada vez
mais frias. As metáforas
servem-me já de pouco, são brinquedos
sepultados bem fundo entre estilhaços
de uma estrela que eu vi cair do céu.
Como era bom sofrer quando alguém me fazia sofrer,
como era clara a escuridão do mundo
reflectida no espelho deste corpo,
no cristal ainda puro dessas lágrimas
tão absolutamente necessárias
à minha vida insone,
ao naufrágio dos sonhos que alguém destruía
e que pareciam sempre disfarçados
de sinais do destino.
No avesso dos anos fui crescendo,
fui conseguindo decifrar as máscaras,
o seu extenso alfabeto de paixões,
todo esse repertório de anjos e demónios.
Por isso, finalmente,
passei de vítima a verdugo,
tornei-me um aprendiz bem sucedido
na arte da tortura
e o coração que sofre já não é o meu.
Sei agora que o crime não compensa
que o preço será sempre demasiado
e que a estranha moeda em que o tento pagar
vai perdendo o valor todos os dias.
À passagem dos anos é difícil
colher ainda as "flores do mal" ,
respirar o seu cheiro,
alimentar de sangue outra vez meu
essa hidra infiel a que chamamos
alma,
esse vírus mutante viciado
em fascínios e mágoas e remorsos
- imitações das máscaras de Deus.
Fernado Pinto do Amaral in. "Pena Suspensa" Dom Quixote
imagem: Lorenzo Mattoti [confesion]
Sem comentários:
Enviar um comentário