a chegar...


No princípio Lembro-me: estava ao colo de alguém. Havia um terreiro, uma casa ao fundo, ou no meio, isolada. Nem ár- vores, nem arbustos, só um corvo esgravatava, na terra ver- melha, como um borrão saltitante.E o sol. Meio-dia, talvez. Porque a luz vinha de todos os lados, e na casa não se distin- guia um refúgio, uma sombra: desenho trémulo, sem protu- berâncias nem reentrâncias que, de vez em quando, um golpe de vento parecia arrastar. — É ali. A minha chegada são estas palavras, com a sua clareza, ditas por ninguém. Voz sem corpo que soava um pouco atrás de mim, voz sem nome, sem sexo. Voz que afastava as coisas. Que me começou a perseguir, que me continuou a perseguir, que ainda me persegue. Voz que estará, no instante da minha morte, a dizer-me: — é ali. Eu tinha nove meses e não deveria lembrar-me. Mas lembro-me. Com a exactidão desfocada dos que não sa- bem morrer. O mundo começava com uma chegada, que era uma partida. Com uma viagem. É ali: lugar a que mais tarde viria a dar um nome. Um lugar que começou a crescer, até não haver lugar algum. Ou só a indiferença de todos os lugares:

Rui Nunes, in "Barro" relógio d'água, 2012

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