O EXTRAORDINÁRIO PIERRE GOULD

Pierre Gould regressou de uma longa viagem na companhia de uma jovem morena, que por única roupa, usava uma manta colorida. Andava descalça, mostrando os tornozelos e a parte inferior da barriga das pernas; não dizia nada e mantinha-se imóvel atrás de Pierre, olhando o vazio.
- Quem é? - perguntou um de nós.
- Perdão?
- A rapariga. Pierre pareceu surpreendido e voltou-se para trás.
- Oh, ela! Trouxe-a para a acabar no metro, mas acabei por não ter tempo. A sua resposta deixou-nos sem voz.
-É um livro - explicou ele. - Presumo que é a primeira vez que vêem um do género. Aquiescemos.
- No país de onde venho, o papel é caríssimo, e reservam-no para a edição dos clássicos e dos dicionários. Os escritores não têm, por isso, outra solução que não seja tatuarem os seus textos sobre a pele, porem uma manta por cima das costas e irem vender-se em pessoa à livraria.
Observou pensativamente a sua mulher-livro.
- Aqui, o primeiro capítulo está escrito na garganta; os dois seguintes sobre os seios; o quarto no ventre, e assim por diante, até às coxas. A seguir, temos de a virar. Há muitas autoras qeu fazem gravar o fim nas nádegas, e o desenlace na intimidade.
À maneira de prova, levantou a manta da rapariga, e vimos que ela tinha a pele coberta de minúsculos caracteres de imprensa.
- Não imaginam a que ponto isto encoraja o amor pela literatura - acrescentou. - Lá, os jovens já não lêem os livros: devoram-nos.
E depois, irónico:
- A leitura, este vício impune...

Bernard Quiriny, in "Contos Carnívoros" ahab, 2011
trad. Miguel Serras Pereira

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