que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
que faria sem este silêncio sorvedouro dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue
sobre a poeira do seu lastro

que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoche
sem voz no meio das vozes
encerradas comigo


Samuel Beckett

[in Relâmpago, revista de Poesia nº 13, Outubro de 2003]
trad. Manuel Portela

PRISÃO DE NEULENGBACH, 16 DE ABRIL DE 1912

Enfim! Enfim! Enfim! Enfim, um alívio para o meu sofrimento! Enfim papel, lápis, pincéis e tintas, para desenhar e escrever. Uma verdadeira tortura, estas horas selvagens, vagas, crueis, estas imutáveis, informes horas cinzentas e monótonas que tive de viver, privado de tudo como um animal, entre quatro paredes nuas e frias.
Um ser interiormente fraco, teria certamente começado a afundar-se e também eu teria enlouquecido, se esta estagnação se tivesse prolongado por mais tempo, dia após dia.
Assim, e não obstante sentir-me terrivelmente deprimido, arrancado ao campo da minha actividade, comecei, para não me afundar completamente, a pintar com os dedos trémulos , molhados na minha saliva amarga. Utilizando as manchas do reboco, tracei cabeças e paisagens nas paredes da cela. Depois observei como os desenhos se desvaneciam pouco a pouco empalidecendo até desaparecer, na profundeza da parede, como se tivessem sido apagados por uma mão invisível, dotada de um poder mágico.
Presentemente, Deus seja louvado, tenho de novo com que pintar e escrever. Finalmente restituiram-me o meu perigoso canivete. Posso manter-me ocupado e assim suportar o que doutra forma seria insuportável. Sinto-me humilhado, rebaixado, pedi, supliquei, mendiguei para conseguir estes objectos e chagaria mesmo a choramingar se necessário. Oh! Minha arte! Que não farei eu por ti!

Egon Schiele, in "Diário da Prisão" litoral ed., 1987
trad. Filomena Marques

UMA BALEIA VÊ OS HOMENS

Sempre tão atarefados, e com longas barbas que agitam com frequência. E como são pouco redondos, sem a majestosidade das formas acabadas e suficientes, mas com uma pequena cabeça móvel onde parece concentrar-se toda a sua estranha vida. Chegam deslizando sobre o mar mas não nadam, quase como se fossem pássaros, e infligem a morte com fragilidade e graciosa ferocidade. Permanecem longo tempo em silêncio, mas depois entre eles gritam com fúria repentina, com um amontoado de sons que quase não varia e aos quais falta a perfeição dos nossos sons essenciais: chamamento, amor, pranto de luto. E como deve ser penoso o seu amar-se: e áspero, quase brusco, imediato, sem uma macia capa de gordura, favorecido pela sua natureza filiforme que não prevê a heróica dificuldade da união nem os magníficos e ternos esforços para a realizar.
Não gostam da água e têm medo dela, e não se percebe porque a frequentam. Também eles andam em bandos mas não levam fêmeas e adivinha-se que elas estão algures, mas são sempre invisíveis. Às vezes cantam, mas só para si, e o seu canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento angustiado. Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes.

António Tabucchi, in "Mulher de Porto Pim" difel, 1998
trad. Maria Emília Marques Mano

UM VELHO

No café no lugar de dentro na zoeira turva
senta-se um velho na mesa se curva;
com um jornal diante dele, sem companhia.

E no desdém da velhice miserável
pensa como usou tão pouco o tempo deleitável
em que força, e eloquência, e beleza possuía.

Sabe que envelheceu muito; sente-o, é visível.
E contudo o tempo em que era novo ao mesmo nível
do de ontem. Que espaço apressado, que espaço apressado.

E considera como burlava dele a Prudência;
e como nela tinha confiança sempre – que demência! –
a perjura que dizia : «Amanhã. O tempo é demorado».

Lembra-se de impulsos a que punha freio; e sem medida
a alegria que sacrificava. Cada história perdida
agora troça da sua desmiolada sageza.

…Mas do muito que foi pensado e não esquece
o velho atordoou-se. E adormece
no café apoiado sobre a mesa.


Konstandinos Kavafis, in “Poemas e Prosas” relógio d’água, 1994
trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis

«Por ter a certeza de não desperdiçar o seu tempo, dizia alguém que só lia um romance dez anos depois de publicado. Não é seguro. É mais prudente esperar dez anos depois de o autor estar morto. Às vezes, só depois de cem anos. Não é mais seguro simplesmente não o ler?»

Vergílio Ferreira, in "Escrever" bertrand, 2001
foto. André Kertész [ Hospice de Beaune ] 1929

EROS É A ÁGUA

Entre as tuas pernas
o mar revela-me estranhos recifes
rochas erguidas corais altaneiros
contra a minha gruta de búzios concha nácar
o teu molusco de sal persegue a corrente
a pequena água inventa-me barbatanas
mar da noite com luas submersas
tua ondulação brusca de polvo congestionado
acelera nas minhas guelras um latejar de esponja
e os cavalos minúsculos flutuam entre gemidos
enredados em longos pistilos de medusa.
Amor entre golfinhos
aos saltos lanças-te sobre o meu flanco leve
recebo-te sem ruído olho-te entre bolhas
cerco o teu riso com a minha espuma
ligeireza da água oxigénio da tua vegetação de clorofila
a coroa de lua abre espaço ao oceano.
Dos olhos prateados
flui longo olhar final
e erguemo-nos do corpo aquático
somos carne outra vez
uma mulher e um homem
entre as rochas.

Gioconda Belli, in "O mar na poesia da América Latina" assírio & alvim, 1999
trad. José Agostinho Baptista

imag. Lorenzo Mattotti

«Hoje também não fui à faculdade. Levantei-me cedo, apanhei o autocarro com destino à UNAM, mas desci antes e dediquei grande parte da manhã a vaguear pelo centro. Primeiro entrei na Livraria da Cave e comprei um livro de Pierre Louÿs, depois atravessei Juárez, comprei uma empada de presunto e fui ler e comer sentado num banco da Alameda. A história de Louys, mas sobretudo as ilustrações, provocaram-me uma erecção de cavalo. Tentei pôr-me de pé e ir-me embora, mas com a verga naquele estado era impossível caminhar sem provocar olhares e o consequente escândalo, já não apenas das viandantes mas de todos os peões em geral. Por isso voltei a sentar-me, fechei o livro e limpei as migalhas do casaco e das calças. Durante muito tempo fiquei a olhar para qualquer coisa que me pareceu um esquilo e que se deslocava sigilosamente pelos ramos duma árvore. Ao cabo de dez minutos (aproximadamente) dei-me conta de que não se tratava de um esquilo mas sim de uma ratazana. Uma ratazana enorme! A descoberta encheu-me de tristeza. Ali estava eu, sem me poder mexer, e a vinte metros, bem agarrada a um ramo, uma ratazana exploradora e esfomeada em busca de ovos de pássaro ou de migalhas arrastadas pelo vento até à copa das árvores (duvidoso) ou do que quer que fosse. A angústia subiu-me até à garganta e tive náuseas. Antes que vomitasse, levantei-me e larguei a correr. Ao cabo de cinco minutos a bom passo, a erecção tinha desaparecido.»
Roberto Bolaño, in "Os Detectives Selvagens" teorema, 2008
trad. Miranda das Neves

Georges Pichard [ilustração]









Pierre Louÿs [ Trois filles de leur mère ] 1979

Guillaume Reymond [ game over ]



Tetris



Space Invaders

REDENÇÃO

I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das coisas mudas; salmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do Mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!

II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
Desse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.


Antero de Quental, in "Sião" frenesi, 1987
imag. Columbano Bordalo Pinheiro [Antero de Quental] 1888

«- Ao envelhecermos torna-se mais difícil arrancarmo-nos ao esplendor da paisagem que atravessamos. A pele desgastada pelo vento e pela idade, distendida pela fatiga e pelas alegrias, os diferentes pêlos, lágrimas, gotas, unhas e cabelos que caíram por terra como folhas ou hastes mortas deixam passar a alma, que se extravia cada vez mais amiúde no exterior do volume da pele. O último voo não é na verdade mais que uma dispersão. Quanto mais envelheço, melhor me sinto em toda a parte. Já não resido muito no meu corpo. Receio morrer um destes dias. Sinto a pele demasiado fina e mais porosa. Digo de mim para mim: um dia a paisagem há-de atravessar-me.»

Pascal Quignard, in “Terraço em Roma” ed. notícias, 2002
trad. Miguel Serras Pereira