MISTICISMO

Apetecia-me ser de seda e chagas, como os santos,
Que brocassem de oiro a dobra do vestido,
E me coroassem de mitras e me espetassem de flechas,
Que me dessem, as mulheres os seus cordões, por promessa,
E mos roubassem, os ladrões, por profanação,
E me retocassem, por ano, o roxo das feridas apetecíveis,
Que o santeiro endoidecesse e me doirasse os cabelos e o sexo,
E que os povos, depois, proclamassem o milagre.

Andar em cima do andor a exibir as pústulas e o luxo
Até que um ricaço mandasse pôr em rubis
O meu sangue de esmalte luzidio…
Estar, assim, no pensamento das velhas,
Na cama, com as viúvas,
E nos olhos de todas as mulheres, como um deslumbramento…

Como eu queria ter um padre de escola para me fazer o sermão da festa!
E, findo o incêndio da igreja, depois da propaganda subversiva,
Ficar numa cova de esterco a reluzir os olhos de porcelana
Aliviado do oiro e liberto das feridas
Por causa dos rubis para vender em leilão!


António Pedro, in “Antologia Poética” angelus novus, 1998
Foto Fernando Lemos [ sonhos altos ] 1949

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