«Ó velho oceano, os homens, apesar da excelência dos seus métodos não conseguiram ainda, ajudados pelos meios de investigação da ciência, medir a profundidade vertiginosa dos teus abismos; abismos há em ti que mais longas sondas, e as mais pesadas, confessaram ser inacessíveis. Aos peixes... isso é permitido: não aos homens. A mim mesmo perguntei por vezes que seria mais fácil de conhecer: a profundidade do oceano ou a profundidade do coração humano? Muitas vezes, com a mão em pala sobre a testa, de pé nos barcos, enquanto a lua se balançava entre os mastros de um modo irregular, surpreendi-me abstraindo de tudo de tudo o que não era o fim que pretendia, ao esforçar-me por resolver este difícil problema! Sim, qual mais profundo, o mais impenetrável, o oceano ou o coração humano? Se trinta anos de experiência da vida podem até certo ponto inclinar a balança para uma ou outra destas soluções, seja-me permitido dizer que, apesar da profundidade do oceano, não se pode comparar, quanto a esta propriedade, com a profundidade do coração humano. Já convivi com homens virtuosos. Morriam aos sessenta anos e toda a gente exclamava: "Praticavam o bem neste mundo, quer dizer, praticaram a caridade: eis tudo, não é esperteza nenhuma, todos podem fazer o mesmo." Quem pode compreender o motivo porque dois amantes que ainda ontem se adoravam se afastam, por causa de uma palavra mal interpretada, um para Oriente e outro para o Ocidente, como os aguilhões do ódio, da vingança, do amor e do remorso, e nunca mais se vêem, ambos embrulhados no seu solitário orgulho? Quem pode compreender a razão pela qual qual as pessoas saboreiam não apenas as desgraças gerais dos seus semelhantes mas também as particulares dos seus amigos mais queridos, apesar de ao mesmo tempo sentirem aflição? Um exemplo incontestável para fechar a série: o homem diz hipocritamente que sim e pensa que não. É por isso que os javalis da humanidade têm tanta confiança uns nos outros e não são egoístas. A psicologia ainda tem muito que progredir. Eu te saúdo, velho oceano.»


Isidore Ducasse Conde de Lautréamont, in "Cantos de Maldoror" fenda, 1988

2 comentários:

eyeshut disse...

muito bom.

(este livro ainda o tenho na pilha dos "por ler"! :)

miguel. disse...

é um bom livro para ler e para ir relendo...
sempre que volto a ele trago mais qualquer coisa que ficou para traz.