INCONSCIENTE SEVERO

Fui ao banco pedir dinheiro,
muito dinheiro e muito tempo
para pagar, talvez por inteiro,
na semana se S. Nunca, à tarde.
Deus sabe o que me custou
vestir de parvo e respeitável,
para que me dessem crédito!
Do outro lado, só à gravata é amável
o dono da sinfonia que perguntou
se era a primeira vez, se tinha
bens de garantia, prédios e coisas
assim, julgando pelas unhas,
medindo pelo relógio, achando
possível saber tudo sobre mim.
Claro que fingi ir às do cabo,
mostrei-me indignado, preocupado
com a burocracia e com o desplante
de tanta indignação. És mesmo def!
Carrega aí na tecla três, a ver se vês,
meu pequeno anarquista português!
Já cheio de papel, segui para a conquista:
nada de encargos, menos muito menos
de compromissos, a própria namorada
a sorrir de complacência, cá vamos
para nada em direcção à impunidade,
que a grana tudo compra: adeus
até mais ver, emprego, até à vista
desarmada se percebe que não volto
a esta pífia, pobre, disfarçada democracia!
A minha hipoteca é um livro de poesia.


Manuel Fernando Gonçalves, in " fechamos a alma, ao fim da tarde, com estrondo e animação" & etc (2007)

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