DESCRIÇÃO DA MENTIRA

O teu corpo assobia debaixo dos arandos. Insinuas a liberdade das bestas protegidas pela conduta dos ventos?

Livra-te da liberdade antes de entrares em mim.

Tu é veloz e obscura entre os arandos acesos; és profunda e bela como um rosto na água; a tua pele é doce. Porém a minha língua é sagaz

e os teus ouvidos escutam sem misericórdia.

O silêncio e os seus círculos, o ácido que depositas sobre a minha saúde,

a sujidade fervendo dentro da minha alma:

este é o preço da paz. Recorda-te.


(...)

A indiferença está na minha alma. É a velhice da misericórdia.

Esta é a hora mais antiga e o meu coração resvala sobre a astúcia.

Ainda os meus dedos são ágeis nas ulceras e alcançam rostos protegidos pelo desprezo porém a minha lucidez está oferecida à morte.

Tu és voraz no crepúsculo:

tua resistência é húmida; tua língua, fértil na minha boca;

sorves o medo com os teus lábios; tua nudez é grande.


Porém o prazer é máscara da memória.



António Gamoneda, in "descrição da mentira" quasi (2007)

2 comentários:

lebredoarrozal disse...

porque será que me é sempre doloroso ler o antónio gamoneda?
tenho que comprar este livro.

Daniel Pelegrín disse...

Gamoneda é telúrico, material, intenso até a raiz. Gostei do poema, em português parece diferente. Salud