coisas para ir lendo...

Jorge Silva Melo [ século passado ] cotovia, 2007

Não se trata, apenas, de uma inabalável convicção de editores atentos. Experimente-se isto: rasure-se do nosso espírito a hierarquia dos géneros (orgulhar-se-ia alguém de viver num «país de dramaturgos» tanto como se orgulha do seu «país de poetas»?), pérfida invenção corporativa – e Jorge Silva Melo não é poeta nem romancista –, pegue-se neste monumental Século Passado e leia-se. Não é preciso mais. E, pela leitura, atravesse-se o país desde os anos 50, o Portugal apertadinho, em que as revistas de cinema, com fotografias e resumos, eram o seu telescópio de menino para o mundo, enquanto comia uma bola-de-berlim da leitaria do Senhor Aires.
Sob a epígrafe de serem ficção três quartos da nossa vida, Jorge Silva Melo reúne, nestas quase 600 páginas, boa parte dos escritos dos seus quase 60 anos de vida, não cronologicamente mas pelo significado que cada assunto tratado, ou pessoa, teve em cada década. Formidável ideia essa, a de escrever as Memórias não agora, fechados os 50, mas desde sempre, de as ir escrevendo com os dias, para depois as arrebanhar e nos oferecer.
É da homenagem a muitos seus contemporâneos que Jorge Silva Melo quer que as Memórias se façam; e nessa humildade de se encarar como mero figurante, o rapaz que assiste à vida lá do 2º balcão («nunca nos libertamos da adolescência, não é?»), esta é uma das lições deste livro a todos os títulos comovente: a consciência de que há gestos inaugurais que são absorvidos pela época que os suscitou, e que essa injustiça do presente nos pode calhar a nós. Mesmo assim, mesmo sabendo que ninguém conhece aquilo que o futuro dele irá reter, Jorge Silva Melo entrega este livro, trabalho de toda uma vida e oportunidade de exposição e auto-valorização, aos que vieram antes. As memórias dele são essencialmente as memórias que ele guarda dos outros. E isso, neste país ingrato, trapaceiro e grandiloquente, é coisa de nos apertar o coração:« Não andei, livre, a vagabundear, nem livre divago, nem foi, afinal, sozinho comigo e as bolhas nos pés que calcorreei Tates e Louvres, cinematecas e escadas para o galinheiro das óperas. Prolongo, filho eterno e demorado aluno, genes e lições (…) nada inventei, tudo me foi em segredo ditado (…) Vil tristeza, esta pobre identidade, nem o nariz é meu, nem aquilo que vejo fui eu a ver.»

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