Oriundo na vontade dos homens se livrarem das forças incontrolavéis da natureza, o mito constitui uma política de salvação pública que se manteve muito para além do necessário, e se firmou pela força tirânica reduzindo a vida à exclusiva dimensão da sobrevivência, negando-a como movimento e totalidade.
Contestado, o mito unifica as contestações, cedo ou tarde engloba-as e dirige-as. Nada lhe resiste, imagem ou conceito, de quanto tente destruir as estruturas espirituais dominantes. Ele reina sobre a expressão dos factos e do vivido, à qual impõe a sua estrutura interpretativa (dramatização). A consciência do vivido, que encontra a sua expressão ao nível da aparência organizada, define a consciência individual.
O sacrifício compensado alimenta o mito. Já que toda a vida dos indivíduos implica uma renuncia a si próprio, é preciso que o vivido se defina como sacrifício e recompensa. Como prémio da sua ascece o iniciado (operário promovido, o especialista, o empresário—novos mártires canonizados democraticamente) recebe um abrigo talhado no seio da organização da aparência e instala-se confortavelmente na alienação. Ora nas sociedades unitárias os abrigos colectivos desapareceram, subsistem apenas as sua traduções concretas para uso comum: templo, igrejas, palácios,... lembranças de certa protecção universal. Restam hoje os abrigos individuais, cuja eficácia poderemos contestar mas com certeza não lhe ignoramos o preço.

Raoul Vaneigem, in "Banalidades de Base" frenesi (1998)

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