PREFÁCIO
Antes do sol se pôr, o céu do Estoril enche-se de malvadas andorinhas. E isto estraga os planos de qualquer pessoa. Não há ordem naquela zaragata tão bem voada, que segue uma indecisão rabugenta e faz questão de confundir o que tanto custou a juntar.
As minhas andorinhas, tal qual as ruas, adivinham a minha morte, fingindo a vida. O sono é uma tarde perdida, para a qual não se acordou, às quatro da tarde, ou lá o que é: o mais que se sonhou é pouco para se ver.
O meu amor tem duas coisas pouco claras.
E esta é uma delas: pôr-me a olhar para o que não posso saber.
É na distracção que está a felicidade e estas crónicas pretendem desviá-la mais ainda. Cada andorinha tem a sua pancada— elas próprias talvez preferem «missão» —, mas não se consegue atribuí-las por mais de um segundo a uma única que seja, porque trocam de pancada em pleno voo e não têm peso.
Ia morrendo.
As andorinhas sabem que são bonitas e que o céu, sem elas, se ressente. Gostam de fazer sofrer quem as vê no intuito de pensar nalguma coisa. E sabem sempre que não há confusão ou algazarra que possa compensar a alegria que parecem trazer mas podem não trazer só por serem andorinhas.
Nunca é bom sinal começar a reparar nos passarinhos. Mas as andorinhas são um caso especial. Há ali uma identidade trocada qualquer; a tinta-da-china, que pareceu gatafunho a quem tinha tempo para perder com complicações de uma só cor: preto, branco e azul. E cada preto, cada branco e cada azul, claro ou escuro ou cinzento, conforme a andorinha no momento em que a vê — e quando se diz, sempre muito antes de se ver. Faz o quê ? Voa.
Voa apesar de tudo. E, apesar de tudo, voa.
Miguel Esteves Cardoso in. " A minha andorinha " assírio & alvim
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Já não leio o MEC (com excepção de uma ou outra crónica) há uns largos anos. Este texto serviu-me de aperitivo...
eu diria mesmo mais, serve de entrada para uma boa "refeição" o livro "come-se" mesmo muito bem, e o facto de serem muitos textos, ou crónicas, dá para ir intercalando com outras leituras...
e fico muito contente com o regresso do Miguel Esteves Cardoso ao formato [livro], há muito que não o liamos assim...
:)
Enviar um comentário