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O amputado penetra a noite seguido pelo cão. O ar que se respira é húmido . A humidade entra-lhes directa nos pulmões. A lua projecta do alto das sombras. As sombras crescem. Eles não caminham sozinhos.
De cabelo cortado à escovinha, o amputado avança firme. É um homem robusto e atlético. Leva um embrulho preso entre a força do antebraço e o amparo das costelas. O cão é magro, escanzelado. Um rafeiro de pêlo curto, muito brilhante, mas, como teima permanentemente em mostrar os dentes num jeito do focinho, parece sorrir.
O homem caminha obstinado. Enverga, para além de qualquer intuito ainda desconhecido, um esgar macilento de dor. Enquanto o cão acompanha-o como cão, respirando arquejante, de língua estendida, deixando atrás de si, pelos ladrilhos, paralelepípedos e alcatrão, um lastro translúcido de baba que a lua e as estrelas testemunham.
Seguem em silêncio pela avenida principal, contornando primeiro o jardim da praça, os edifícios velhos da baixa, ladeando o campo das macieiras, seguindo depois em frente, passando pelo caminho-de-ferro, a estação e só depois alcançando o cemitério.

A noite é baça.
As ruas vazias.

Chegados lá, o homem e o cão encontram o portão fechado, dado o adiantado da hora. Ou saltam o muro, ou então esperam pela manhã. O amputado não pensou. pegou no embrulho com a mão inocente e atirou-o. Do outro lado do muro ouviu-se o som mole de algo morto que cai. De seguida, com o auxilio do coto, pegou ao colo o cão leve e balançou-o o suficiente para o lançar desgovernado para dentro do vazio. Depois deste silêncio, o som foi mais adulto, equilibrado, não se fazendo ouvir qualquer latido pesaroso. Ou o cão era mudo ou tinha aterrado sólido sobre as patas, e sobrevivido.
O amputado olhou o céu. contou um conjunto de estrelas, sobre o cimo do muro caiado e repetiu para si os seus nomes: Rubídia, Pálida, Mimosa, Intrometida e Acrux...
Deu quatro passos atrás, medindo a distância. respirou fundo e arrancou em direcção ao obstáculo com a máxima velocidade que as suas pernas detinham. Os seus pés, impulsionados pela força dos músculos, levantaram-no do chão. E por momentos suspenso no ar invisível, sentiu que voava. Depois do impacto, agarrou-se ofegante ao cimo do muro e, quando a gravidade começava a fazer peso, com a ajuda de todo o corpo impulsionado, acabou por sentar-se.
Doa alto do muro a vista era ambivalente: de um lado, esperava-o um campo aceso de lajes - Aqui jaz. Ali jaz. - Um campo de ossos, fotografias e epitáfios semeados por mensagens de despedida ou saudade e ardentes chamas trémulas. Enquanto do outro se apresentava a cidade: fantasmagoricamente iluminada pelas luzes indecisas dos candeeiros; guardada pelos cães vadios e as gruas de aço. Onde, dentro das casas e edifícios, supostamente deitados sobre colchões e lençóis pestilentos, os peitos dos homens e das mulheres horizontais, cravados de ódios e maledicências, levantavam-se e baixavam-se ao ritmo de inspirações e expirações mais ou menos inconscientes.

Eles respiram, pensou o amputado.
-É isto afinal o mundo - acabou por murmurar.

Num salto, os seus pés encontraram a terra amolecida, enterrando-se. O cão e o embrulho esperavam-no subservientes lá em baixo. O cão sorriu ao vê-lo. O amputado retribui-o. Vivo. no meio de tanto cadáver, é quase nada - disse-lhe , enquanto sacudia a terra das calças. Apanhou o embrulho e avançou. Por diante havia uma casa. O cão segui-o por entre os jazigos e as chams das velas que, trémulas, o intrigavam.

Sandro William Junqueira in. " Não há limões "

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