imagem de Gustav Klimt [the poetry]

A NOITE PROGRIDE PUXADA À SIRGA


" cogito em coisas que me recordam conversas distantes com amigos. não sei bem o quê, chegam à memória rostos e sons. vozes. não compreendo o que dizem, estou cansado. é-me difícil saber se sou eu ou o meu corpo que está cansado. talvez estejamos os dois, raramente nos separamos. aturamo-nos os maus humores e os momentos de insuspeita felicidade. dormimos e amamos juntos.por vezes apetece-me deixa-lo, voar e estender-me por cima dele, esfregar-lhe o sexo na boca, nos cabelos, beija-lo, fazer-lhe inesquecíveis cenas de ciúme, para depois ter o prazer da reconciliação comigo mesmo.mas há momentos muito tristes, aqueles em que as plantas crescem subitamente para dentro da sombra, e tu não estás aqui. é obsessão minha amar quem passa. se abrisse os olhos ter-te-ia, só para mim, até à linha inexistente do horizonte do mar.anoitece devagar. anoitece sobre os ombros. anoitece onde não estou e em redor do meu corpo, anoitece por dentro dos objectos que evocam a tua presença. a penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido.dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundo.se morresse agora mesmo não deixava nada, porque bebi toda a minha sede, esvaziei-me, devorei noites a fio esse amargo que têm as coisas antes de nos pertencerem. teu corpo, por exemplo, custou-me tanto inventar-lhe formas consistentes, um reflexo, uma sombra que se lhe adaptasse e o acompanhasse. teu corpo vive hoje dentro do espelho onde se perdeu o meu.a paixão talvez seja a ausência dum corpo que desperta a intensidade da vida no interior doutro corpo; lugar onde a luz mal emergiu ainda, e as palavras se formam a partir de vestígios de silêncio. ardem brandamente no sangue, as palavras, mas ainda são confusas, dispersas, apenas sons indefinidos. depois, a mão executa-as, mata-as um pouco ao alinhá-las sobre desertos brancos, e a vida estremece, modifica-se. as palavras, quando mortas, já não valem a pena porque substituíram tudo. criaram outras realidades. é com medo que me vejo por trás de cada uma delas. as palavras são perigosas máscaras fúnebres que se colam à cara e não precisam de boca, de voz. as palavras mudas escondem o medo de um dia deixar de saber quem sou por trás de tanta máscara sobreposta.não escrever, não falar, não gesticular. imobilizar-me como a pedra que freme à passagem do vento. uma lágrima irrigará o cristal, um veio de água sobre as palpebras, sobre os lábios que adivinham a transumância das constelações. a respiração rouca da árvore sob o peso da geada. a flor que sinaliza o caminho dos insectos. a terra, a pouco e pouco, perceptível ao tacto. grito, finjo o grito.sentado à varanda do mundo morro como todas as coisas que morrem, sobrevivo com todas as coisas que vivem.permaneço sentado, não faço absolutamente nada, nem mesmo pensar. descobri o lugar onde o corpo e a mente pernoitam fora do tempo. "

Al Berto in. " O Medo " assírio & alvim

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